Dedos de Prosa II

Priscila Lira

Ana Pérola

Foto: Ana Pérola

 

O barulho do mormaço

Tu não sabe o que é conviver com o Diabo a vida inteira, conviver com o Diabo a vida inteira é duvidar de Deus a cada segundo.  O Diabo, quando te odeia, te prende e algema tudo ao teu redor: tua mãe, que ama o Diabo, e teus irmãos. É assim que ele consegue te fazer ficar. Lama, lama e lama tinha gosto a minha vida. Nasci na lama, feito um porco. Burra que era a minha mãe (de ter uma ninhada, de ter olhos de bicho que não enxerga xyz, que não sabe o que é o Diabo, que não sabe nem o que é a loucura de viver na lama com uma ninhada e o Diabo), burra que era eu, menos que a minha mãe, burros e esfomeados que eram meus irmãos, burro que era o Diabo, burro e cruel, burro e tarado, burro e nojento. Porca que eu sou, porque convivi na lama com o Diabo a vida inteira.

Quando era criança e, na catequese, me ensinaram o que era o Diabo, logo vi que ele estava na minha casa, escondendo comida, me comendo, quebrando garrafa, quebrando a burra da minha mãe, esbugalhando de medo os olhos esfomeados dos meus irmãos. Quando o Diabo vive contigo, ele nunca mais sai de ti.

Eu corria para a esquina e tentava fugir do Diabo. Subia na mangueira e gritava o nome do meu pai, mas só ouvia o barulho do sol quebrando as folhas. Porque meu pai morava com Deus, ele nunca me responderia, a gente trocou ele pelo Diabo. Eu gritava o nome do meu pai, gritava que ele tinha me abandonado e me deixado na lama, no inferno, ele não respondia, estava feliz, no céu, com Deus, sem fome, dormindo nas nuvens e decepcionado com a gente, que dormia com o Diabo.

Meu pai não respondia, mas meu estômago Gritava, meus irmãos choravam na minha lembrança e eu, pequena e burra, presa na lama, lesma inútil, voltava para o inferno. Se tu pensa que o Diabo sempre maltrata, tu é mais burro que eu. O Diabo engana, te abraça, te dá pão e café com leite, corre contigo no quintal, depois te come, te bate, te joga no chão e quebra garrafa. O Diabo toma banho, passa perfume, vai na igreja, reza o pai nosso, aperta a mão dos irmãos, conta histórias inventadas da vida, diz que ama, diz que cuida, depois te fode, te todos os lados, de todos os jeitos, de todas as formas. Fode, fode, fode. É nojento o Diabo, feito de barro por dentro e por fora, com cheiro de fossa e pele de pedra. Eu via o desgraçado passar perfume, mas aquilo, no meu nariz, era essência de esgoto, cheiro de raiva guardada, que rasgava meu olfato feito gilete, chegava na goela e dava ânsia. Barro e enxofre formavam aquele monstro com a Bíblia debaixo do braço apertando a mão da vizinha burra, que me olhava de cara feia e dizia pros filhos não andarem comigo, que eu era indecente.

Indecente eu era na minha rua, na minha escola, a indecente, burra, estranha, muda, feia, suja preta fedida, mas não era surda. O Diabo me chafurdou na lama, eu era toda lama, assim ele fez da minha vida um inferno, até longe do inferno, porque suja de lama que não tinha água que limpasse, o Diabo fez de mim o Diabo.  Ninguém tinha medo de mim Diabo, tinha ódio, nojo, eu não era bem-vinda no céu da vida dos outros, nem por meu pai, Deus o tenha.

Por isso fugia e me escondia, até a fome bater, no escuro empoeirado da sala de livros da escola, porque lá ninguém sentia meu cheiro, nem via minha cara diaba, lá eu não ouvia me gritarem de muda. Foi lá que tive a ideia de matar o Diabo. Mal eu sabia que uma vez na tua vida, nunca mais ele sai.

Mas o Diabo tinha a herança do céu, do tempo que Deus o criou do barro. O Diabo gostava de doce, de suspiro. Todo dia comprava suspiro na padaria. E ficava feliz, sorridente, comendo suspiro. Dava café com leite e pão pra mim e meus irmãos, corria com a gente no quintal, mas aquilo era a porta do inferno, a gente sabia e aproveitava, não havia como correr da porta do inferno, só nos restava aproveitar o prelúdio da desgraça. A gente não tinha raiva do anúncio que o suspiro trazia da padaria nas mãos do Diabo, porque sabíamos que o suspiro era o que restava do paraíso naquele enxofre de homem.

Uma vez o Diabo me obrigou a fazer uma receita de suspiros, porque a padaria não abriu. Eu coloquei purgante no suspiro para me vingar, e depois o Diabo se vingou de mim, em mim, na minha mãe e nos meus irmãos. Nesse dia eu corri do inferno e no dia seguinte, na sala de livros, decidi matar o Diabo. Não seria uma morte cruel, como as que eu fantasiava para ele todos os dias, porque eu não queria ver ele morrer, eu queria o Diabo morto!

Eu, a indecente, suja, nojenta, rasgada, roxa, muda, lesma inútil, não queria voltar para casa depois do terror da noite inferno passada. Não queria ver a cara de paraíso dos outros. Queria morrer, mas se morresse, iria para o inferno eterno e nunca mais veria meu pai. Por isso resolvi matar o Diabo, assim teria tempo de pagar meus pecados e finalmente dormir nas nuvens.

Escureceu, ninguém deu por minha falta, voltei para casa e o Diabo dormia virado de costas para a burra da minha mãe. Matando o Diabo, eu fugia, e ela podia ser burra e feliz com a ninhada de infelizes longe daquele inferno, enquanto eu pagaria os pecados e depois encontraria meu pai. Uma faca de cozinha no peito, ele arregalou os olhos e me agarrou o braço. Foi virando água e me largando len… ta… men …t… … … e. Roubei o saco de pão na cozinha (mais um pecado para pagar nessa vida desgraçada), corri e subi na mangueira da esquina, a esperar que o inferno final se armasse lá em casa com gritos e polícia. Silêncio.

O que eu não sabia é que a vida é um formigueiro de infernos e que o Diabo me perseguiria, agarrado no meu braço com os olhos assustados, para sempre. Fugi, mas a fome, a rua, a chuva, o sol, o frio, me transformaram no Diabo e eu não conseguia terminar de pagar meus pecados. Jamais chegaria no céu, meu pai se esqueceria de mim ou rezaria para que a Diaba que ele um dia chamou de filha, nunca mais aparecesse na sua frente. O mundo me fodia, fodia, fodia, de todos os jeitos, todos os lados, todas as formas, cuspia em mim, na porca, nojenta, fedida, burra, Diaba. Numa noite, sem dormir, com medo do Monstro que matei, percebi que inferno maior que esse não havia, que o inferno estava na minha cabeça e de lá não sairia sozinho.

Por isso deixei que um homem sorridente me fodesse pela última vez, por um saco de suspiros. O que eu farei depois? O que devia ter feito desde o ínicio, mas burra que sou, não percebia: Abrir a minha cabeça com a faca ainda suja de sangue do Diabo, tirar aquele ninho de enxofre lá de dentro e encher o vazio com suspiros. Os suspiros, resto de céu que sempre esteve na minha vida, me levarão até meu pai, com quem dormirei nas nuvens, a esperar o dia em que minha burra mãe e a ninhada façam o mesmo.

O formigueiro continuará aqui embaixo, misturado aos sangues da faca.

***

 

Petit Mort

As flores amarelas de medo daquele velhinho pornográfico estão por toda parte. Hoje, domingo ensolarado, uma delas acordou tremelicando sobre o meu peito. Desonrarei os compromissos, quebrarei amizades novas, pouparei o exercício de simpatia alheio, não sairei de casa. Além do mais, posso aproveitar o calor e lavar minhas calcinhas.

É crua a vida. Alça de tripa e metal. / Nela despenco: pedra mórula ferida. / É crua e dura a vida. Como um naco de víbora“. Será que a Hilda lavava suas calcinhas? Será que as estendia no varal da Casa do Sol? Ou, como eu, não gostava de expor assim o seu sexo e as secava atrás da geladeira?

Por todo lugar brotam as flores amarelas, hoje o mundo tremelica de medo, os ditadores, o povo, os democráticos, os ex-militantes, as mães de estudantes, o moço revistado com maconha no bolso, as mulheres com o rosto escaldado condenadas à feiura eterna, eu. Morreremos todos, medrosos. Mas preciso lavar as calcinhas.

Sonhei que havia um espelho na cozinha, eu parava em frente a ele e me observava, tirava a camisa e o reflexo me dava um tesão imenso. Deslizava a mão sobre os seios e descia até a barriga, os olhos fixos no meu outro. Acordei. Uma pena, a excitação do sonho perdeu-se junto com ele.

Fumarei um cigarro, colocarei uma música e vamos às calcinhas. Também não gosto de lavá-las na área de serviço do prédio, uso a pia da cozinha mesmo, podia ser a do banheiro, mas a janela que fica contra a torneira é muito agradável. Gosto de pensar que as tantas janelas vizinhas estão logo ali, de frente para esse quadrado, a me olhar, de costas, esfregando minhas calcinhas. E saber que, apesar disso, ninguém está vendo.

Eu cheiro cada fundo antes de lavar, para ter certeza que meus fluidos continuam transparentes e inodoros, ou com o odor de sempre. Imagine um voyeur assistindo isso tudo e ficando louco. Essa branca de bolinhas pretas eu usei no dia em que esqueci de descer no ponto de ônibus do trabalho, a rosa, não lembro, a cuequinha preta foi naquele dia que encontrei o pessoal, ela fica bem com a minha saia longa, aperta a barriga e meu corpo parece mais bonito.

“Tinta, lavo-te os antebraços. Vida. Lavo-me”

Essa é a melhor parte, o momento em que eu coloco as mãos dentro do vestido, seguro em cada ponta do meu quadril e deslizo a calcinha que uso. Sinto-a passando pelas coxas, até ficar cambaleante e eu apará-la no pé. Ah, um voyeur assistindo isso tudo. Assistem, todas essas janelas me veem tirando a calcinha e ficam boquiabertas, fazendo promessas para que eu também lave o vestido.

“No estreito-pouco / Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida”  

Calcinhas escondidas, uma por uma, no varal elétrico. Meio domingo para ainda existir. Podia continuar a brincadeira do sonho, não mais com o espelho, com a janela do quarto. Todos esses quadrados, preparem-se, o vestido cairá! A cama de frente para o sol, as pernas abertas para todas essas pessoas, o meu corpo despido para mim. Todos esses sinais, esse par de seios que contrasta tanto com os meus braços bronzeados, o pequeno relevo que se forma nas costelas, o umbigo, o quadril estreito, as coxas com uma leve penugem que reflete a luz, as canelas ásperas, quando tomar banho vou depilar, tudo isso é meu. No sonho, eu tinha razão. Vocês, medrosos, olhem para mim, esqueçam o câncer de próstata e as doenças venéreas, esqueçam as crianças mortas da Síria, esqueçam Fukushima, eu estou aqui, de pernas abertas, o vestido caiu, paguem suas promessas.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos”. A Hilda ia gostar de me assistir.

Meu dedo andando em círculos percorrendo os pelos, desce, desce, molha-se. Desculpem-me, não há narrativa aqui, apenas hidromúrias rebeldes, solitárias, quebrando o protocolo. O meu corpo convulsiona na cama, os dedos encharcam, “a vida é líquida“. Fecharei as cortinas, uma salva de palmas antes e voltem aos seus afazeres dominicais ensolarados. Preciso chorar o medo do mundo.

Priscila Lira (Pitinga/AM, 1991) é uma poeta e contista amazonense radicada em Curitiba, onde faz mestrado em literatura (UFPR). Tem um e-book publicado, Manual de Feitiçaria, disponível no Scrib e no Camaleo, e um livro de contos no prelo: O Barulho do Mormaço.

 

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1 comentário

  1. Tá faltando mais gente assim em nossas letras. Vida longa a ela!

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