Dedos de Prosa II

Márcia Denser

 

Caroline Pires

Ilustração: Caroline Pires

 

MEMORIAL DE ÁLVARO GARDEL

Em memória de meu pai por quem não pude chorar

Foi enterrado a 28 de maio com aquele casaco que eu lhe dera em 87, que um dos amantes havia me dado ou roubado ou não sei, era um casaco sal e pimenta vagamente inglês, imagine, ele, logo o velho, logo Álvaro que só se vestia no Minelli desde que eu tinha seis anos e minha irmã quatro, mas de todo modo foi enterrado com um casaco de bom corte, sal e pimenta, meio inglês, que roubei ou ganhei ou não sei que amante remoto eu poderia ter arranjado nos confins do naufrágio de 87 (aqui refiro-me ao meu drama pessoal que agora não vem ao caso) porque o dele (o do velho, o de Álvaro) o arrastou muito antes, vinte anos antes, mais ou menos no início de 70 quando eu o enterrei, nós (eu e minha irmã) o enterramos pela primeira vez, o velho louco, desabiondo y suicida, que aprendera filosofia, dados,  timba e a poesia cruel de não pensar mais em si (como naquele tango de Mariano Mores). Por isso aceitou e usou o tal casaco dois números maior, dado ou roubado de alguém que já não precisaria de nenhum (um amante talvez morto ou preso ou exilado) sequer de mim que também já começava a naufragar naquele ano de 87 e meu pai – que só se vestia no Minelli desde 1947 – o aceitou com irônica resignação, o velho pilantra antecipadamente morto, como se soubesse ou adivinhasse ou antecipasse que o enterrariam nele pois que doravante repousa precariamente em paz (mas num excelente casaco de tweed inglês sal e pimenta) no columbário número 80 do cemitério de Vila Mariana, ala B.

(Em 26.06)

Há um mês mandei inscrever a lápide com um nome e duas datas, premeditando futuramente o painel de azulejos ou ladrilhos, sem contar a inscrição que desta vez sim, mas não foi assim, posto ter sido informada que em três anos o município recolheria suas cinzas à gaveta de modo que seria bobagem gastar dinheiro por tão pouco, o administrador enxugava a testa coberto de razões e fuligem, os grossos óculos de míope, donde a não menos premeditada quanto tola inscrição In Memorian de Álvaro Gardel, pai eternamente amado, suas filhas Júlia e Amanda – 29.05.24 – 27.05.97  igualmente caput – três nomes e duas datas – sequer esta derradeira vaidade lhe foi concedida, velho (ou  negada à mim?) mas tolamente eu insisto: então não restará nada e terá sido só, terá sido tudo: desejo e pó?

Porque eu não sabia ser tão tarde, tão inútil.

Veja bem, não estou tentando penitenciar-me até porque para mim não há perdão nem castigo nem penitência nem remorso (não há pecado para minha estúpida inocência) apenas a obstinada pergunta sem resposta sobre o desígnio da vida de um homem resumido a duas datas e um nome, enterrado com um casaco de outrem (ele que só…) pai eternamente amado, desejo e pó, e então o silêncio das palavras não ditas, dos gestos desfeitos, enfrentar este vazio sem perguntas nem respostas que é meu pai definitivamente morto na antevéspera de completar 73 anos.

(Em 26.05)

“Sua chegada é repentina, inflama-se, extingue-se, é jogado fora”
(I Ching – hexagrama 30 – Li – A Chama, nove na quarta posição)

Desta vez meu pai está morrendo.

Eu deveria ou poderia ou não me restaria outra alternativa além de pegar um ônibus para ir vê-lo pela última vez no hospital quando sua segunda mulher ligou-me: seu pai está morrendo (morrendo entre estranhos, como tem vivido os últimos quinze anos, se fazendo de  cego, surdo e burro).  O hospital fica no quilômetro 27 da estrada de Itapecerica da Serra, com nome de santa que duvido existir alguma chamada Mônica, todavia ocorre que há oito anos – desde que vendi o apartamento, o automóvel, os telefones, os móveis de família, liquidei minha vida (ou o que materialmente restava dela) – e os móveis eram tudo o que restava – desde então experimento, digamos, o lado coletivo e anônimo da vida, o que significa andar de ônibus, metrô e assemelhados, sem contar o cotidiano mais pedestre, indo e vindo de lugares onde ninguém me espera, não sou benvinda (não sou mais), pois há muito não conto, não vivo, não valho o suficiente a ponto de alguém se dispor a perder tempo, gastar gasolina, em atenção ou amor ou amizade ou compaixão ou piedade comigo – eu, sombra de mim.

De forma que na condição de filha, a mais velha, a primogênita, teria que pegar um ônibus para Itapecerica da Serra, a norma exigia, os bons costumes, e ir ver o pai ainda uma vez, possivelmente a derradeira.

Mas seria bobagem.

Porque eu sei (eu e minha irmã sabemos) que é bobagem, que este cara está morrendo há 28 anos, que começou a morrer  quando eu o internei pela primeira vez no sanatório para a cura de desintoxicação – ele, o alcoólatra,  o desgarrado, o infeliz, o despojado dos bens desse mundo, até mesmo do amor e  orgulho, o vaidoso  dipsomaníaco.

Foi em 71.

Recordo-o vagando no escuro corredor do escritório onde eu trabalhava (meu primeiro emprego com carteira assinada e direito ao INPS). Vinha vacilante, macerado em álcool, subira sozinho os nove andares (enquanto os irmãos esperavam-no lá embaixo  sentados no taxi com taxímetro ligado, que aliás ele pagaria) para pegar a guia de internação e eu lhe entreguei rapidamente o envelope, temendo ser vista ou que o vissem ou que nos vissem, mas ele desapareceu, um meio sorriso torto, sugado pelo elevador, reconduzido de volta à rua onde o aguardavam no taxi para levá-lo e interná-lo e trancá-lo e jogar a chave fora.

Porque eu apenas era jovem (ah, a juventude, essa falha impossível de se evitar em dado período da vida) naturalmente cruel e impiedosa como todos os jovens que acreditam com absoluta certeza na vitória e na esperança, no poder e na glória eternos e para muito breve.

Então eu não tinha tempo para você, velho, para parar e olhar pra você, voltar-me e te ver despojado dos bens desse mundo – alcoólatra que naufragara, silencioso e hostil, inconquistável rendido indiferente, sem implorar (porque se ignorava despojado da  sua fortuna pessoal, aquele capital inalienável de sanidade e lucidez ) – eu é que estava suja aqui dentro, porque a tua derrota, a tua rendição doía em mim, velho,  então melhor te excluir do pensamento e do coração, fingir que você não existia, porque eu não ia me voltar para te olhar  (estacar a meio caminho da vitória iminente) parar e olhar para você só para me sentir um lixo,  por isso te internava e internava obsessivamente em sanatórios onde  te deixava, te  trancava e jogava a chave fora.

Mas não vou pegar ônibus nenhum.

Aos 43 anos não se pega ônibus nenhum — além de velha, derrotada – e de certa forma sim, derrotada, mas precisamente por isso não vou pegar ônibus nenhum para te ver morrer, meu chapa, não definitivamente.

Porque nós merecíamos mais do que isto, alguém assim que nos acompanhasse, amigo e silencioso, nos pagasse um café à beira da estrada, a meio caminho do hospital da tal santa que não existe, oferecesse um saquinho de balas, nos estendesse o lenço voltando o rosto para não nos ver chorar e – sobretudo – porque era preciso que você me visse derradeiramente acompanhada, não mais a filha da sua orfandade, e então partisse consolado pelo fato de não me deixar tão só e  já tão distante da breve vitória, sabendo-me amparada por alguém a conduzir-me sem contudo me carregar – qual troféu, qual fardo, tanto faz, depende do ponto de vista – posto que a mim já basta minha dor.

Solicito apenas tempo, lugar e o direito de chorar derradeiramente por meu pai cuja alma se apagou há 28 anos e hoje definitivamente de corpo e alma, duas vezes morto e acabou-se.

Terá sua morte sobrevida? Terá a alma sua palma? Sim ou não? Terá o espírito gás suficiente ou se extinguirá num sopro, rendido ao demônio do abismo? – como se nunca tivesse existido, porra.

Decidi-me por não (aos 43 anos não se pega ônibus nenhum e muito menos nas ditas circunstâncias, etc.) ir, velho, acho que em nome duma derradeira dignidade, ao menos hoje, ao menos desta vez, a última, porque será para sempre.

Aliás, ambos merecemos esta última dignidade – o transitus da vida à morte – de não estarmos sós, os passes de ônibus amassados entre os dedos, como se fosse tudo o que daqui levaríamos, a passagem para o outro lado – o óbolo de Caronte?

Porque não se joga fora o coração metendo-o num ônibus para dizer adeus apenas com um passe amarrotado no bolso, o símbolo desta sub-vida, desta sub-paisagem  de postes e fios,  deste sub-horizonte de cães onde transito (que é uma das tantas formas de estar morta) daí  não haver muita diferença entre você e eu, meu chapa, porque também fui despojada, também me fodi – nem que estivesse na sua cola, velho – puxei você, puxou ao pai, eis o óbolo (o passe de retorno ao mundo dos mortos vivos).

Nada, sequer o bolo de mel, a coroa de flores, unicamente a moeda de Caronte a ser paga ao barqueiro pra te atravessar para o outro lado, entrando assim na morte com as mãos vazias.

Ficarei te devendo também isto.

E devo-te ainda mais porque devo à mim, não sem razão de tal forma sou cobrada, conquanto toda humilhação seja uma penitência, todo fracasso, uma misteriosa vitória, todo acaso, um encontro marcado, toda morte, um suicídio, mas não vejo consolo algum nesta sórdida teleologia, pois  existe algo em mim que não se compraz com palavras, não trafica com sonhos, não negocia e também não adiantaria, porque tem um limite até onde se pode enganar-se a si mesma (sem contar o descarado plágio avant la lettre borgiano).

Por enquanto, devo a Deus e todo mundo pois que outra forma de explicar o fato de reiteradamente me voltarem as costas deixando-me há anos e à margem com dois passes de ônibus de ida e volta para o Limbo – do nada ao nada? E agora me abaixa Horácio (ou será Hovídio?) para lembrar que o homem é a soma das suas condições climáticas, é a soma do que se tem, uma problema de propriedades impuras que se desenrola fastidiosamente até o nada inexorável: desejo e pó.

Sem lastro, sem guia e a lembrança da breve, artificiosa vitória (esta, a misteriosa vitória? eu passo) que era falsa e eu não sabia, que não podia perdurar o meteoro cuja órbita já é queda, se inflama e extingue-se, a menos que não tivesse de ser assim, a menos que sob os escombros ainda seja a carne, sempre a velha carne, a voz do sangue que a tudo reivindica, inclusive o direito à dor (a esta dor, a minha, a da filha, o ônus da primogenitura) pessoal, intransferível e única dor, a de chorar o pai (o único) enquanto agoniza (apenas uma vez ) e desta vez (de uma vez por todas) para sempre.

Post-Scripitum: O presente relato foi escrito a 26 de junho, um mês após o enterro, e 26 de maio do mesmo ano, na madrugada anterior à morte (que intuí inevitável embora sem dados da realidade para comprová-lo) aproximadamente durante os momentos de agonia. De modo que esta oração fúnebre escreveu-se furiosamente, desenredando-se em sentido inverso, ou seja, para trás, para baixo e de costas (a despeito de mim)  –  direto ao centro dilacerado e oculto da dor.

 

 

A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), A ponte das estrelas (Best-Seller, 1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II – obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas. Dois de seus contos – “O vampiro da Alameda Casabranca” e “Hell’s Angel“ – foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que “Hell’s Angel“ está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

 

 

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1 comentário

  1. Belo texto de uma filha ressentida(?), mas saudosa. Marcia Denser dispensa elogios: é uma ótima escritora.
    Maria Lindgren

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