Dedos de Prosa II

Caio Russo

 

Sinisia Coni

Foto: Sinisia Coni

 

Confissão ao pé do caixão

Murmuras: mamãe.

Sonolenta a cabeça em cadência. Tocas aqueles tecidos turquesa. Toga da matriarca.  Tempo teve que desejaste a imobilidade desse superego que bolo de fubá tão bem fazia. Tua vontade era um tanto mais volátil, que fosse dar uma volta por uma semana até a raiva do “Você não vai filha, nem pensar” passar. Folga de filha. Férias da família. Pobre pequena, das Fúrias nada vem que não seja fulminante.

Murmuras: mamãe.

“Se você ficar de mentirinhas vai ver só, venho puxar teu pé de madrugada depois que morrer, ah se venho, faço questão, moleca”. Ria um riso dúbio, danado de delicado. Sabia ser tácita, tênue, torpe e tenra como tu que dela tascou os traços por atavismo. Não consegues derramar lágrimas. Levanta em ti uma confusão, balbúrdia como se de uma ora para outra passaste a sentir em mandarim. Tua mãe ali tensa, num sono nada tranquilo, parecia o ideograma de um rio em coma. Também os trapezistas ao redor, artistas dos sentimentos, como equilibravam bem tormentos, lágrimas caiam num choro compassado, conivente com a morte, morto, consonante ao ambiente. E tu esturricada como tundra gelada.

– Gente, que menina estranha, nem chorando está…

– Meu Deus, perdeu a mãe e parece que nada aconteceu…

– Sempre foi problema essa menina, precisava ver…

– Lembro que dava um trabalho para a mãe dela, nossa…

– Morreu de desgosto…

– Morreu de tanto passar nervoso…

– Infarte, nova como era?

Murmuras: mamãe.

Deslizas por entre as difamações ditas entre dentes. Aproxima-te do caixão e confessas ao ouvido de tua mãe o segredo. Sorri e segue em solilóquio com tua confidente, aquela que cobrirá teus pés noite afora.

Murmuras: mamãe.

***

Releitura de Caravaggio: Narciso em plástico

Ana: esburacas a terra seca ainda que sem unhas

Frio lá fora, sobretudo no imo de ti; espelhavas como uma patinadora sob o lago de vidro; encantavas, teu observar espalhavas em teus esporádicos anseios; trepidavas o olvido de quando embrenhavas nas nódoas de teus rastros náuticos. Quem defronte o espelho? Quem és senão tu no vácuo de ti?  Quem formula essas perguntas? Quem senão a agrilhoada consciência de si, encarcerada numa das tantas salas de tua íntima morada…

Enluarado teu dia é de uma noite imperturbável; num átimo tua face escorrega do congelado espelho, no lugar a vala translúcida da ausência de ti; emoldurada uma diáfana porta ao nada; eras inteiramente nariz, quem organizava tua face senão esse imenso olfato físico, adunco, herança em caídas moedas de um bolso judeu…

Rapinar transbordavas tua arguta inteligência, teu narigão, esse quem impunha tua presença, caneta que assinava o espaço por onde passavas; Lírio da paz, dependurado níveo em teu rosto angular, depois da cirurgia tomou-lhe o lugar essa desenxabida margarida; tiritas a cavar na face um oco de cartilagem, eras inteiramente nariz…

Narciso foste num livre índigo agreste, hoje ninfeia a boiar no estranho licor especular, não afundas, não afundas em ti, soterrada de ficares fora d’água; impressa na tua cara dois ofídicos buracos em catálogos comprados.

Eras nariz.

Toda nariz: respiravas hélio acima das nebulosas: de ora em diante carbono fluente nos escapes dos autos…

***

 

Zoom

Fulgura Ibirapuera no verão: sob verde acobertam asfaltado esgoto: menino lambe prazer absorto em sorvete: favor compensatório do pai no poro: embaixo do músculo fraturada infância: engole difícil: lodoso escuro esôfago.

Caio Russo é escritor, autor do livro “Delicado desespero de beija-flor em voo” (Chiado, 2015), pesquisador na área de Estética, História da Arte, Nova Música do século XX e Rugas em Rostos de Velhas. Tece seu tricô numa cadeira de balanço embaixo d’água. É iminente afogado ao longo do tempo em pausa.

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1 comentário

  1. Dois belos textos nos ajudam a suportar o início de u fim de semana idiota. Mais um.
    Abraços e parabéns
    Maria Lindgren

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