Dedos de Prosa II

Cristiano Silva Rato

 

deborah dornellas int

Desenho: Deborah Dornellas

 

Holofotes

As estrelas estremeceram quando a avalanche de pobres, sem conotações, passou a descê-las e seus valores começaram a deturpar-se em meio à solidão das notas recolhidas. Seus valores já não existem mais. Fodas. A cidade é o próprio artifício, indigestão recheada de restos. De tudo. Nuvens cinzas em um outubro de um ano marcado pela falta de sensatez. Humanidade. Estúpida. Perdida nas porras dos números. “Esclarecidos” da modernidade, esses moderninhos filhinhos de papaizinhos “esclarecidos”. Nem sei se devo tomar partido. Às vezes me recubro de pensamentos fascistas, quero persegui-los e demonstrá-los em gráficos como animais em extinção. Quantos por cento? A quantidade necessária. Cientificamente inferiores, não é? Não são inteligentes. Será que têm alma? Matar todos.

Esta noite os sons se ruíram. Me atirei como uma foice russa na direção de todos e queria acariciar, dolorosamente, seus fios de cabelos bem cortados e aparados. Suas roupas estetica-mente, perfeita-mente fora dos eixos. Toda revolta simulada me dá nojo. Subi como louco em uma das mesas do Mc Donald’s e, em gotas, saiu a, vodka, b, o cachorro-quente do tio da esquina com bastante maionese e ketchup, c, o álcool etílico, que queimou minhas cordas vocais, por isso, acho, não urrei feito um motor de caminhão no meio da madrugada. Provei em segundos aquele gosto azedo do vômito no salão e nos corpos purificados que estavam lá.

Interferência – Antes do fogo queimar, vaguei feito o desespero, haviam olhos ardilosos/ porco asqueroso/ o ar sempre fica pútrido/ algo neles me arrepia.

Passo vagamente. Um felino, rajado, cambaleando por todos os lados, dançando feito um chinês americanizado dos filmes da Sessão da Tarde. A metáfora não é uma metáfora. Os sentidos estão menosprezados na massa ardilosa assentada toscamente em uma parede de um quarto de motel na Guaicurus com São Paulo. Todos os cômodos deste hospício são resquícios de pessoas perdidas nas esquinas mal iluminadas, cheias de carros novos e sem-tetos. Virei a lágrima na boca e reconfortei a mente com mais um pouco. Chega.

Estamos agora parados em frente à máquina. Ela nos olha, vigia-nos, foi programada para isso. Logo chegaram os guardas, com seus olhos esfumaçados enxergando microcoisas, treinados, socando e atirando, dissimulando, nos campos de concentração. A raiva sob os olhos. Necessidade e desejo de tocar algo real. Senti uma forte pressão nos calcanhares, como se fosse uma batida entre caminhões frigoríficos. Meu peito ardeu com a mão, mas os dentes resistiram ao impacto com o chão. Olhei debochadamente para todos e sorri.

***

 

 

Trilha sonora

Belo Horizonte. Aqui todo dia tem uma manifestação. São professores, músicos, carteiros, moradores de rua. Isso, antes mesmo de virar moda. Todos os dias chego, me arrumo para labuta, depois de navegar dentro de dois ônibus lotados, e caros. Esse, por sinal, o estopim para qualquer mente cansada do barulho da cidade. Nem é mais só o centro. Tem carros com auto-falantes enormes, caixas de som portáteis e uma infinidade tecnológica de microaparelhos, servindo para tudo. Desde a sacanagem liberada a uma forma de divulgar a violência do Estado. Eu, vamos assim falando, há muito tempo cansei de pedir explicações destas tais autoridades, virei ateu. Nem azul, nem vermelho, nem rosa choque. Vivo com meu sax, nas ruas, das ruas e para as ruas, há muito tempo ocupo isso aqui, a única verdade, acredito, estas veias que pulsam.

De repente o tempo não era mais… Há alguns dias, o barulho mudou de tom. Um cheiro, esteve parado, circulando, como os gritos, outra hora, um copo de cerveja. Quente. Mijo, à revelia no poste à minha frente. Em seguida cambaleio até o Fórmula 1. Não sei se sou eu, ou outro, caminhando, com seu virtuoso, pomposo, entendimento da psicanálise clássica. Seu grupo. A música é a morte anunciada. Adolphe Sax e seu invento mágico. Há sempre um compasso, uma cadência, uma levada, mesmo quando nós… Tento acompanhar. A bota de couro apressada, pisando em papéis descartáveis, leve fantasia de uma criança sendo arrastada pela mãe, pela tarde. O medo.

Me surpreendi aquela manhã. Ouvi rumores. Mega manifestações em São Paulo, não achava que chegariam a BH. Nem pensamento. Talvez, sonho, mais truculento, energético, vandalístico, vivo. Por aí vai. Creio, até, fiz uma trilha sonora. Acordes dissonantes. Cambaleio pelo pouco espaço que sobra, os pés tentam seguir aquele ritmo. Trilho um, dois, três, não consigo mais contar. O beque, bolado. O ouvido afinado. Morto como Cristo no terceiro dia, de todas as formas, grito junto com a multidão. Uivo. Ginsberg. Meus dedos perderam o controle. O sopro vem junto com o tambor, com a macumba…

Mais um… engrosso o caldo desse feijão… tropeiro. Caminhamos, marchamos nesta festa. Risos altos. De principiantes. Lembro bem. Como esquecer tanto alvoroço pela manhã? O centro, sempre com seu ritmo conservado. Passos apressados, polícia para todo o lado. A praça. Aquela manhã não. Apareceram uns “bombadinhos”, sem saber o que fazer, lembro, tomei um bicudo. Filha da puta! Pensei. Em manifestação tem de tudo, até caso de possessão, vai explicar como uns caras pegam armas e atiram contra seus vizinhos, familiares e desconhecidos.

Não querem mais manter as portas abertas. Os bares. Botecos. Lojas de outros gostos. Bancos. Tropeço e erro a nota caída ao chão. Sorrio bem alto. Há uma tropa no meu gargalhar, meus dedos esquecem o corpo, perco a consciência quando queimo. Não deixo escapar o barril de minhas mãos. Álcool. Amargo, adoçando o fogo cristalino de séculos de abandono. Eu. Nunca estive tão só. Uma moça de trajes elegantes, hoje, curtos e colados ao corpo, realçando seus dias, bem alimentada e bebida de primeira, com maquiagens sutis como devassos moribundos, rela sua perna, no meu pé. Carrega um cartaz. Me olha com desdém, como se tivesse pisado em merda. Pegue minha mão. Pois a casa está quente garota. Me deixe levá-la para dançar. A casa está quente, baby. Eu grito, eu canto, desafino. Atinjo outros tons. Consigo ouvir o piano, a bateria. A casa está quente. Todas as calças são iguais. Saco da mochila o sax e acompanho a melodia. Dou mais um gole, na bebida, respiro. Sopro meu momento na multidão.

Relação mais próxima com a praça, ou pedra como os malucos costumam chamar. Os malucos de estrada, ou artesãos de rua, ou hippies, e/ou micróbios, na verdade existe uma infinidade de tipos e variantes. Nenhuma controlável, todas com suas liberdades, malucos. Existe uma proximidade de… “Traz logo a cerveja pô”. Como ia dizendo, maluco… A cidade é mesmo algo insondável, cheio de tipos, e esses, de repente, se agruparam no centro, na praça sete de setembro, em junho, foi um hospício. O que teve de notícia, de branquinho voando para o exterior, não cabia no jornal. Foram dias agitados. Nunca vi tanta gente reclamando ao mesmo tempo e na falta da voz, apareceu cartaz feito até com papel higiênico. Acho que até vi alguém vendendo cartaz. Mas cada um ajuda como pode, né? Quando aquele povo todo começou a andar em uma direção, pensei umas duas, três, e por aí vai, se ia ou não com eles. No meio disso tudo, vi passar uma galera, com instrumentos, tambor, macumba, violão, pandeiro, apito…

Tinha de tudo. Hipocrisia. Verdade. Fé. Tudo misturado. E alguém, e alguns, uma grande maioria, sem saber sobre o deserto. Ao olhar. De baixo para cima, e retorno, não escondo o volume crescendo. Meu escárnio. Abro a mochila. Lhe grito. Tocarei Sing Sing Sing, em homenagem ao seu belo sorriso… sua luta… e cartaz. O pisar fica mais pesado. A melodia… perde… a alegria… entra tristeza. O sentido do domínio. A alegria. Deixamos de sonhar… ou sonhamos demais? É preciso atingir a realidade. Observo seu pesar. Desisto. A casa não está para alegrias anunciadas. Ela adentra a multidão, como vulto tortuoso, um enigma. Retorno ao meu confinado pensamento, e um irmão, maluco, esses que ficam vagando pelo mundo, pelo menos, o Brasil, me oferece outro trago em uma garrafa com tantas misturas, que seria difícil para um químico descobrir a origem. Ah! Esses alquimistas de rua. Preparam os melhores venenos.

 

Cristiano Silva Rato nasceu em Japonvar, norte de Minas Gerais. Viveu a infância em Belo Horizonte (Vila N. Sa. de Fátima); a adolescência em Contagem (V. Pedreira Santa Rita), na Ruína II (V. Primavera), em Ibirité, e a juventude na Vila Formosa (BH). Atualmente vive no Morro do Papagaio, também na capital mineira. Em todos os lugares morreu e nasceu. No momento possui um blog (desatualizado). Tem um livro publicado (Sentido Suspenso, lançado em 2012, pela Editora Multifoco) e textos espalhados pela web e fanzines.

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1 comentário

  1. Ainda bem que você renasceu, amigo mineiro. Você sabe fazer um belo quadro de nossa vida dita moderna.O Rio é a mesmíssima confusão, talvez pior porque nosso prefeito só gosta mesmo é de grandes eventos. A gente que se lixe.

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