Dedos de Prosa II

Priscila Merizzio

 
aquarelasbarbagelata

 

Uma história escrita com a ampulheta de Cronos

 

 

I

Havia debaixo do colchão de sua cama um facão para cortar pela metade a dor e os sonhos. Julgava uma inépcia pessoas que se refugiavam em fantasias e escutava com lassidão seus discursos. Carregava consigo uma assepsia de emoções que o deixava embotado diante de sentimentos profundos. Foi uma criança sisuda e pautada nas farmacopeias que os mais velhos ensinavam. Considerava frugais as brincadeiras das outras crianças, optando quase sempre pela aspereza da solidão. Cresceu com os ossos dos joelhos ensimesmados e não houve especialista que conseguisse curar a dor lancinante em dias de tempestades. Embora ganisse a cada trovoada, deixava que a natureza se ocupasse de ficar úmida e trincava os dentes com força para não derrubar lágrima sequer. Tão logo alcançou maioridade, partiu de casa em busca de independência. Ambicionava ser um homem rico e também preencher a arcada dentária com ouro trazido de minérios negreiros. Sua personalidade compenetrada lhe rendeu um emprego promissor em uma importante madeireira. Tinha brios luciferianos e nas parcas correspondências que trocava com a mãe não se queixava de saudades, doenças ou escassez de comida, como costumavam fazer os outros rapazes de sua idade. A madeireira foi seu único emprego. Começou como estagiário e aposentou-se como sócio majoritário, exportando pinus à Europa e, para espanto dos colegas, também para as Índias. Saía com mulheres aceitáveis, mas nada extraordinárias. Permitir-se ao extraordinário era fado dos românticos. Jamais armazenou velas para gastar com defuntos. Permitia-se ternura e superstição apenas com seus gatos, que não lhe exigiam cuidados demasiados.

II

Havia algumas raras situações em que ele cruzava o olhar com mulheres que o deixavam em estado de Lua Cheia. Ele tinha pavor do efeito hipnótico e destemperado que elas produziam em seu comportamento. Após sentir o perfume de Cleópatra que emanava do tufo de pelos no meio de suas pernas e de bebericar seus orgasmos de ambrosia, voltava-lhe impiedosa a dor nos joelhos. Ele urrava quase esfarelando os dentes entre as mandíbulas, mesmo que lá fora fizesse um sol de latejar as têmporas. As enxurradas de suor daquelas mulheres lhe valiam mais do que três mil tempestades e não havia nada que amainasse sua dor. Concluía que elas eram ardis feiticeiras, com seus seios de Medeia e gracejos de fogueira, distribuindo sorrisos como quem despeja moedas estreladas em danças ciganas e mesmerizantes. Após o encontro com essas mulheres, caía em si e rechaçava a si mesmo por ter se permitido enveredar nas ratoeiras do desejo descomedido. Punha-se então a ruminar saídas mentais e estratégicas e empunhava tochas gélidas de racionalidade que o livravam do labirinto das câmaras dos átrios e ventrículos daquele monstro sentimental que pulsava na cavidade de seu tórax. Ele não concebia a ideia de ter um coração, apenas um cérebro. Seguinte ao pequeno descarrilamento emocional, retornava a seus afazeres, se inteirando em cálculos e bebericando conhaque em negociações com outros poderosos. Voltava a esvaziar as necessidades de homem em bordéis com gorjetas mesquinhas e não beijava a boca das putas. Substituiu os dentes naturais por dentes de ouro egípcio.

III

Embora tentasse fugir dessas raras mulheres feiticeiras, houve uma delas que fatalmente o envolveu em um véu de brumas aquáticas. Quando deu por si, estava se deitando com ela em meio a incêndios oceânicos que repartiam Netuno em dois e ásperos pedregulhos vigiados por cascavéis que avisavam com seus guizos plutônicos que, frutos férteis e lunáticos, estavam quase caídos dos pés. A feiticeira estendia seu efeito desagradável também sobre seus gatos, que em noites enluaradas estranhamente tomavam formas de enormes lobos, uivando insaciáveis. Os gatos, transmutados em lobos, sumiam na escuridão e traziam consigo, na manhã do dia seguinte, embutidas dolorosamente em seus membros ainda intumescidos, delicadas fêmeas andorinhas. Ele ficava horrorizado com tamanho espetáculo e esguichava água fria para que seus gatos deixassem de ser lobos e as fêmeas partissem, incumbidas de bicarem sozinhas suas feridas. Não se solidarizava com a dor alheia. Ademais, ele estava ranzinza a maior parte do tempo. Ora porque a feiticeira não estava por perto, ora porque ela se ausentava. Ansiava em ter sua sobriedade de volta, embora soubesse que o preço a pagar seria alto. Teria de expelir todo o carmim de suas paredes para revesti-las novamente com o cinza dos bordéis e dos números certeiros de seu livro de contas. Além disso, os gatos pareciam conspirar contra ele quando não transfigurados em lobos. Quando ele começava com suas especulações taciturnas sobre as implicações negativas acerca da feiticeira, os bichanos bocejavam modorrentos. Desde que haviam experimentado os presságios mágicos da Lua Cheia eles observavam sua soturnidade com audaz desprezo e abençoavam a entrada daquela mulher bruxa em suas vidas.

IV

Mal ele sabia que os gatos haviam desenvolvido o desagradável hábito de espionar suas noites de volúpia com a feiticeira, que dominava a arte do amor e entregava despudorada cada nuance de seu corpo quente. Ela engatinhava pelo quarto como uma pantera e colhia seu sêmen em uma taça de ouro.  Quando ela fazia isso, os gatos que estavam espionando pelo vão da porta, ficavam de pelos eriçados e salivavam inebriados. Para ele, aquelas foram noites guiadas por um deus ébrio de Vênus e nada daquilo lhe soava linear. A passagem arrastada do tempo o deixava Saturno. Decidiu que era a hora de findar aquela desgraça. Após uma noite ardente, ele acordou e sentiu falta da feiticeira ao seu lado. Foi procurá-la pela casa e flagrou-a dando seu sêmen de beber aos gatos. Eles lambiam a taça de ouro e ameaçavam transformar-se em lobos. No lugar dos cabelos escuros e sedosos da mulher, brotaram-lhe serpentes que ondulavam sensualmente ameaçando o picar nos olhos para que ficasse cego. Ele começou a gritar apavorado, ordenando que Medusa fosse embora e que levasse com ela as serpentes e aqueles gatos-lobos repugnantes. E assim foi. Para disfarçar a sensação de perda ele iniciou uma criação de cabras. Elas talvez lhe pudessem render calmaria e algum trocado com o leite que produziam. Nutria uma raiva sombria daquela mulher que surgiu em sua vida para levar o que mais de precioso ele tinha: os gatos. E sua inconfessável presença de bruxa. A dor dos ossos do joelho se tornou violenta como uma maldição. Em vez de surgir em meio às tempestades, ela agora anunciava sua presença nas noites de Lua Cheia. Enquanto lobos uivavam ao longe, primeiro partiram-se as juntas e depois os ossos de seus joelhos. Os dentes de ouro de sua boca derreteram-se como argamassa, grudando seus beiços definitivamente. Ele morreu de hipotermia, julgando escutar lobos afônicos uivando lá longe, enquanto suas cabras pastavam tranquilamente na colina. Jamais derrubou lágrima sequer.

***

Domingo maravilhoso

A madrinha arrumou-se com vaidade para participar das costumeiras novenas de quarta-feira que dona Neide, uma senhora ucraniana, grandalhona e azeda organizava na garagem de seu filho. Ordenou à afilhada para que tomasse conta do cachorro e da casa, que logo voltaria para prepararem o jantar e arrumarem as fotografias da parentada. Estava um mormaço por causa do extenuante calor e a afilhada estava deitada, lendo tranquilamente na rede da área, quando em meia hora a madrinha voltou para casa ofegante, dizendo que havia saído no jornal local a notícia mais fantástica do mundo: na paróquia onde ela assistia às missas de domingo, atraído pelos miados medrosos de seu gato, o padre entrou correndo na nave pensando tratar-se de um assalto, quando viu as chamas das velas num fogaréu atiçadíssimo, quase atingindo a cúpula da paróquia. Os santos todos flutuando sobre a mesa do altar. A madrinha em êxtase infantil, exibindo as pontes d’ouro dos dentes enquanto sorria.

***

Aos anjos de Ana Cristina Cesar

 

20 de agosto de 2010

 

Quando vi o porteiro, contrariei as regras sociais todas e pedi para que ele me desse um abraço, na ânsia de consolo para a argamassa de ruínas que eu fechava atrás de mim no portão do prédio. Vesti-me de puta para agradar aquele homem. Puta mesmo, capa de chuva e nada por baixo, apenas as botas de cano alto. Quase cinco anos encarnando a personificação venusiana de um espancador de psiques.

16 de dezembro de 2000

 

A vó ficou preocupadíssima porque saí de casa às 2h da manhã com uma turma para ver o sol nascer no aeroporto. O carro de meu amigo estacionado na frente de sua casa e AC/DC no último volume a deixaram horrorizada. Eu carregava na mochila “O apanhador no campo de centeio” e “A hora da estrela”. O sol nasceu lindo naquele dia. Não me deixei ser beijada por W. Não queria ser beijada naquela manhã.

23 de setembro de 1999

M. e Carlos disseram-me para que eu não chorasse. Deram-me um baseado enrolado com muito amor e serviram-me vodka no maior copo de plástico. Carlos pôs um gomo de mexerica e mexeu a bebida com um galho de árvore. Estávamos na pracinha perto de minha casa. O namorado de M. dormia sobre um banco que nós duas já havíamos urinado, bêbadas. Senti-me em comunhão com o mundo compartilhando olhares cúmplices com minha primeira amiga de Escorpião. O busto do marechal piscou para a cadela no cio que revirava os lixos. O sangue dela pingando na calçada, que o absorvia como nanquim.

11 de junho de 2011

 

No plantão da clínica veterinária, 22h, com as mãos e o rosto cheios de excrementos de meu cachorro que estava morto, sendo em vão reanimado na sala de emergência. Joguei-me nos braços do guardião, dizendo a ele que a única coisa que poderia fazer por mim era me abraçar. Também sujei suas roupas com o excremento de meu cachorro e o cheiro não enojou nenhum de nós, pois fomos humanos e sabíamos que havia muito mais em jogo. Antes disso, quase lanhei o rosto do taxista que quis cobrar-me a lavagem do banco do carro. Disse-me que havia perdido todas as corridas da noite com a morte de meu cachorro em seu automóvel. Atirei uma nota de cinquenta reais em sua cara. Disse que no outro dia daria mais. Estava prestes a saltar sobre ele, pantera e mãe. Expus sua vergonha capitalista.

10 de setembro de 1998

 

Nunca havia me sentido tão feliz e parte de alguma coisa. Nós dois nos amávamos e um de nossos jogos favoritos era transmitir por pensamentos a cor da roupa de cada um enquanto conversávamos por telefone. Sempre acertávamos. Nossos amigos escutavam Garotos Podres, ensaiavam no porão da casa de Rodrigo e, nas horas vagas, jogavam cartas. Eu aproveitava tudo até à exaustão. Sabia que aquilo um dia viraria memória, eu não seria a noiva carregando flores de pitangueiras na catedral, então, parte de mim já despedaçava-se antes do tempo previsto, antecipando crises e passeios no cemitério municipal. Não perdi minha virgindade com B. Sentei-me em lápides e conversei com mortos.

24 de maio de 2000

 

Estava tentando gostar de Megadeth, por indicação de uma amiga que era apaixonada por eles. Ela era loira, com o cabelo ondulado gigante, caindo até seu magro quadril. Uma sereia simbolista. Em seu queixo havia algumas espinhas, o que estranhamente tornava-a mais charmosa e valente. Eu tentava ser vocalista de uma banda punk das meninas ricas do colégio. “Casa de bonecas”.  Não pude seguir as penosas ordens das donas dos instrumentos e locais de ensaio, exigindo de mim uma disciplina de convento. Eu não era uma boneca. Eu não tinha casa. No fim, afastaram-se de mim, por ser “má influência”. Julio havia tomado muitos Benflogin e conversava com uma vaca que estava sentada no banco de trás, ao meu lado.

12 de junho de 1988

 

A falta de notícias suas atirou-me na gruta dos perdidos escandalosos por migalhas da sua boca que me navalha. Da sua ausência que me espicaça. Enterrei o peixe petit poá junto com o canarinho Kenny G.  A tartaruguinha de Carolina perdida no acidente de carro. Exorcizar fantasmas alheios e atentórios dói. Frustrações atiradas como sacos de gelo sobre uma alma quente, porém destemperada. Incendiando nas labaredas de paraísos maniqueístas. Carolina levava-me ao cinema e dormíamos no banheiro, assistindo a várias exibições escondidas, de graça. Nossos corpos vicejados foram atravessados por um raio. Carolina cantou para mim. Você vomitou no BH Lanches. A cicatriz no ventre de sua mãe é profecia.

 

Priscila Merizzio é curitibana. Editora convidada da Germina — Revista de Literatura & Arte. Tem textos publicados em jornais, revistas literárias e antologias brasileiras e estrangeiras. Participou da Bienal Internacional de Curitiba de 2013 e outras exposições e mostras. É uma das organizadoras da Antologia 29 de abril – o verso da violência (ed. Patuá, 2015). Minimoabismo (ed. Patuá, 2014) é seu livro de estreia e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2015.

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