Dedos de Prosa II

Maria Camargo Freire

 

LUMA FLORES

Arte: Luma Flôres

 

Sítio

Foi a única vez que amei meu pai por detrás dos acordos sociais, do afeto obrigatório que irradia não do progenitor propriamente dito, mas na perversa escola de costumes sincrônicos que denominamos família por medo de alcunha pior; meu pai foi um bronco, crescido em sítio andava pela cidade nauseado pelo fascínio arredio de animal silvestre, se deixássemos correria em quatro patas por aí, se entocaria em uma viela arisco dos odores em cinza-chumbo espargidos pela rua; enriqueceu na vida de comerciante, mamãe deu-se até ao luxo de tornar-se alcóolatra com whisky, e ele continuou amarfanhado sob o casulo do terno que o repelia simplesmente pela alfaiataria de bom gosto, pinguim no deserto citadino, envergonhava-me dele; era de esquerda, lutava pelas minorias, contra o sentimento elitista que aflorava vez ou outra inopinadamente, mas na formatura lá estava ele, aquele homem que não diferenciava Rembrandt de Tintoretto, em sua tacanha mente esses nomes não soariam apenas estrangeiros, soariam intransponíveis, inaudíveis em comas de sutilezas desconcertantes; nem fingir sabia, mamãe ao menos escondia as origens em seda, em vestidos drapeados de alta-costura, papai comia de colher quando em casa; acordei conturbada por uma ressaca dessas que atravessarão o dia sem pestanejar, havia comemorado na noite anterior minha primeira exposição solo em galeria de arte, a única dissonância noturna era meu pai, pedaço de cerca-viva ali parado entre as telas, ondulando entre as brisas de um “Olá” ou um “Como vai?” em que respondia num farfalhar rupestre verde-oliva, roufenho, na orla entre palavras e ruídos indistintos; sobre a mesa um pequeno bilhete: “Eu te adimiro muito filha, seus desenhos lembram o sítio quando eu era pequeno, o pão da vó, as botas do vô que você não conheceu, eu te adimiro e te amo”, aquele “i” inteiramente inconveniente berrava, no lugar da mudez costumeira havia a interferência de uma tulipa nascida sóbria, lisa, envolta na graciosidade do próprio rubor, um tronco exposto, lisonjeiro, inefável, a xilogravura da face de papai impressa naquele “i” de sobrancelhas arqueadas, elevadas em busca da cabeça calva, na espera de um pingo de choro abscondido, naquele qualquer momento, amei papai.

São Paulo,11 de abril de 2013.

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Tricô

Deito-me no mole solo oco na espera de que o opaco entardecer assopre as brilhantes velas dessa opressora luz diuturna, carregando-as para lá dos meridianos sem nome, nas beiradas de um precipício por se fazer, externo chão agora sóbrio na sisudez supostamente sempiterna, oculta na lisura do planalto a delgada vala tímida, semente de abismo vindouro, também sinto saudades da choupana ao pé da montanha que nunca tive, angustia meu corpo a nostalgia dos lugares que nunca estive, também sofro por paixões, rasgo o verbo em brigas homéricas com namorados, maridos, amantes furtivos que não me conhecem, às vezes basta um bom dia do padeiro para termos três filhos e um deles está de recuperação em matemática e por isso nada de jogos no computador; sou solitária e tenho de consolo os gatos que afago, o enfiar dos dedos nos ternos pêlos, pouso olhar sem pressa nos novelos trançados com poeiras que a brisa da noite trouxe, sou alérgica e por isso meus felinos são fogos-fátuos que eu pinto enquanto me balanço calma na cadeira que ainda terei um dia, de um vime lustroso que fará inveja nos olhos de minhas amigas, ficarão famintas, feéricas para fazer parte da minha família órfã, mas eu só permitirei que elas se sentem na sala ou, no máximo, na cozinha, nunca o quarto, lá meus segredos, as intimidades de minha vida proscrita em santidades exalam dos cantos, por mais que se guarde, alguma perversão de mesmidade corriqueira pode aflorar e flutuar em faces inocentes, depois terei de colher os espantos que elas soltarão espontaneamente, ali pausadas como espantalhos; saio para o jardim adornar com carinhos silenciosos as hortênsias juntinhas em favos de um anil amigável, ainda não tenho o terreno, o solo arado nem a disposição necessária; hoje o café da tarde será em Paris, quem sabe não encontre meu Sartre que tenha usado tampão na infância enredado na própria náusea de seu chá de hibisco morno, não é meu chá favorito, prefiro o de tília que nunca tomei, mas lembro-me de sua infusão levemente embriagante, de seu odor macio que sorvi enquanto lia Proust, não conheço Paris, nem quero; os únicos seres fascinantes que encontrei perambulantes por estradas de terra batida foram os que nasceram quase-abortados, que levam no pescoço a brandura frouxa de quem não sabe para onde olha, saíram espremidos para o mundo, no respirar nota-se que falta um dedo de fôlego, ainda que não tenham problemas respiratórios, queria cruzar com gente assim algum dia; o carteiro tomou-me por confidente, acho que por conta desse ar de anciã púbere, as rugas dobradas umas sob as outras por debaixo de minha pele lisa, adoentada de um rubor saudável, confessou-me que traiu a mulher com o vizinho já idoso que sofria de catarata, achava que ele tinha um espiar charmoso, um jeito elegante de ver todo mundo pela metade, meio invisível como somos mesmo, iceberg de vísceras às escuras, ele contaria se pudesse, mas tem jeito de solteirão, o cachorro dele precisou fazer uma cirurgia às pressas, não sabia que hérnia dava até em bicho, ficou nem quinze segundos, entregou a encomenda e não disse nem “oi”; pouso a caneta cuidadosa na caixinha, essa inimiga que me atormenta, que me torce os tendões e mói um tanto da minha loucura em pigmento escondido, depois de escrever fico um pouco translúcida, fantasmática, mas hoje acabou a tinta e o último caderno eu rasguei ontem, faz frio em Portugal.

Lisboa, 07 de setembro de 1998.

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Estilhaços

 

Pendulo, desde antes da infância se perder póstuma numa parede de cal seco, pela posse de objetos quebrados, frágeis, seja um relógio sem ponteiros, um alfinete amassado descartado logo pela costureira na prova da próxima cliente, sentia na palma da menina muda que eu era a atmosfera lúcida das coisas falidas, o halo daquelas rebarbas do tecido, aquelas linhas inúteis que não ligariam mais nada, a liberdade do que deixou de cansar-se, o ócio daqueles fios viravam em minha mesa arabescos marroquinos desse lado do Atlântico, uma vez trouxe para casa quatro cacos de copo, a aba de porcelana que fora de uma xícara, dois isqueiros acabados e um gato morto, o que me rendeu várias cintadas e o primeiro berro de “Menina, você é louca” de minha mãe, depois ela descobriu minha coleção de bitucas, tampas, canetas sem tinta, jornais rasgados em que as notícias ou propagandas ficaram ilegíveis (eu tinha critérios), ouvi do quarto “Rogério, é mais sério do que pensávamos, mas deve ter tratamento” num timbre tão indiferente que se pudesse eu teria reunido à minha coleção de destroços;  passei a acumular seres imateriais, andava horas pela cidade coletando falas desgastadas, contornos de desvalidos estirados ali na praça da Sé, teve até um olhar fosco de um senhor alto que se sustentava pelo hábito de andar previsivelmente por ruas asfaltadas de certezas num cinza inóspito, outro dia há pouco colhi a elegância no desfilar de uma prostituta em fim de noite, voltava para casa mas mantinha os trejeitos infecundos miscigenados nos tons da maquiagem que se equilibrava indolente entre o vulgar e o borrado; acho que para comemorar minha cura milagrosa fomos em família ao circo, na época ainda havia leões, olor de estrume de animais repisado por desconhecidos envoltos em pipoca amanteigada, o palhaço no centro do picadeiro era hilário para todos que não fossem eu, meu riso viera cindido, um pequeno abscesso interno feito de frustrações com fraco efeito fora, o truque consistia em jogar uma azeitona para o alto e fingir que se engasgara, enquanto o público se acabava de gargalhar a brincadeira ia dando certo no esôfago do coitado, estertorou sufocado, embrulhado nos sons do próprio trabalho, agricultor soterrado em seu celeiro de amareladas sojas, foi se esvaindo o riso até que a tragédia consumada engoliu todos os lapsos de pilhéria, naquele instante pulei em risos, saltei no picadeiro levantando ao redor de mim uma poeira fina de tão agastada, raptei o rosto retorcido por debaixo da massa de pó branco, também o nariz de um vermelho vivo, enfiava no bolso enquanto os outros artistas vinham atropelados socorrer o cadáver; ainda hoje rio inaudível ao disparatar para mim mesma a imagem de que em algum cemitério pode ter nascido, transgredindo garganta, caixão e terra, uma vistosa videira.

Madrid, 22 de fevereiro de 1995.

 

Maria Camargo Freire é artista plástica, tem 63 anos e mora atualmente em São Paulo. Conjugou em sua obra o barroco de Caravaggio, a sinuosidade de Giacometti e o neo-expressionismo de Bacon; lacera-se em pequenos cortes de vida por respirar em excesso o bálsamo dos dias cinéreos. Escritora diletante, pretende esboçar um romance em prosas poéticas: suas “Telas de uma exposição”. Heterônimo de Caio Russo, escritor, historiador e pesquisador em Estética, Arte Moderna e Teoria da Literatura. Hedonista estóico, cínico peripatético que preza pela sutileza do sofrimento sentado. Tem por prazer fumar embaixo d’água. 

 

 

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