Dedos de Prosa II

Cristina Judar

 

Desenho: Re

 

duas vulvas cheias

 

desalojavam-se continuamente, suas vulvas em estado crescente, duas luas. permitiam-se pernas, ventriloquismos diversos e endoidecimentos, sob a pena de não darem conta de toda a noite. os desejos, secos, queimavam os ventres livres das senhoras estandartes. navegavam em solo profundo para depois ressurgirem soberanas em mantos de fúcsia e líquen. roucas. em uma rua qualquer da bela vista. que era madame, e também era Satã.

o bar improvisado em uma garagem de frente tocava em looping um CD mequetrefe com a miscelânia: pet shop boys e bauhaus, the cure, cindy lauper e “radio gaga”, do queen, como se tudo isso fosse a mesma coisa. o dono do lugar sempre diz: “é tudo a mesma coisa”. ele ama o tecno brega soante enquanto come o churrasquinho da calçada, ao lado da loja da moça de roupas de renda que tem como freguesas as crentes de bíblias quentes.

mas, voltando ao quarto, revolvendo os tecidos, tudo vazava em encanto, expurgo e esconjuração. uma delas sorvia o próprio batom, o sabor ácido & pastoso, ele, passado nos lábios para que a aparência garantisse o embelezamento aliado ao devido ultrapassar de fronteiras, em instantes ela iria subir por um elevador transparente que trafegava rumo ao alto, tão rápido a ponto de dar vertigem, com luzes roxas e douradas exibidas do lado de fora da caixa acrílica. um top of the rock imaginário, mas, mesmo assim, top of the rock.

esse era o cenário da orgia literária de bocas que dizem mais do que mil livros. quando emudecidas nos instantes preliminares de fortes contrações físicas e comportamentais. tensão e expansão do mundo entre lençóis. arquitetas do universo, ditavam sinfonias astrais como quem não está nem aí.

***

 

 

ordem X

 

Era de rituais e mitos que elas viviam. Os recriavam, os compunham, incluindo e desconstruindo personagens de jornadas virtuosas sem a vergonha de serem autoras suficientemente despreparadas para o negócio. Recitavam suas estórias em descompasso, para ninguém prestar atenção. Seus giros e circumambulações eram purificados com a água de córregos super habitadas por ovas de pequenos insetos que acreditava-se possuírem propriedades reconciliadoras quando grudavam nos fios de cabelo, formando coroas visíveis apenas telescopicamente. Coroas necessárias. As brigas eram frequentes e sempre aconteciam assim que o círculo era desfeito.

Não era para menos, a composição de braços, pernas e cabeças não podia ser mais desconjuntada, eram tantos os membros que subiam e desciam ao som de kalimbas e de um xilofone de brinquedo. Seus pensamentos também não adornavam ideias em comum, eram dotadas de uma consciência infantil, dada a criar cenários fantásticos de vestidos longos e transparentes, perfumados com incenso de patchouli (pogostemon cablim). Adorariam ter um tambor, mas as moedas que angariavam não davam nem para bancar alguns parafusos. De fato, dinheiro era o que menos havia por ali, apenas sêmen seco, excrementos de andorinhas e folhas em abundância. As amoras colhidas em ramos baixinhos tingiam suas unhas mas serviam como alimento. E molhavam seus corpos por dentro.

Com uma receita que levava manteiga, cardamomo, cerveja, uma gota de aguarrás, mel e sódio era possível preparar uma espécie de refeição ritualística com as mesmas amoras, que depois de tantas luas viradas, as mulheres não supunham mais conhecer o sabor – o que, para um estranho que por acaso passasse por ali, poderia parecer até interessante. Esse homem se esconderia atrás de alguns galhos, observando-as com os olhos quase cerrados, até que a celebração acabasse e o alimento da confraternização fosse finalmente liberado. Nesse meio tempo, elas realizariam a dança das estações, simulariam a morte e o renascimento com gestos exagerados e dançariam a Euforia até a contração final. Duas delas cairiam no chão, esmaecidas, corpos em formato de X, circundadas pelas irmãs de sua ordem.

***

 

 

Para que servem os atores

 

A antiguidade tem um cheiro próprio, mais desagradável do que a constatação de que muito tempo já passou. Naquela fantasia, o náilon de tonalidade castor estava grudado como nacos de jaca endurecidos, com aquela sua cola intrínseca e naturalmente eficaz. Tufos das fibras sintéticas carameladas entravam pelas minhas narinas, me fazendo engasgar com suas colônias de fiapos, ácaros coçavam tanto o céu da boca quanto o labirinto auricular e a minha ambição aos pedaços anteriormente embutida, hoje inerte.

Para fugir do autodesprezo e daquela agressividade humana que introjetamos na mente – a fim de obter a dignidade Crística de alguma punição – fingíamos ser macacos coffee & latte. E tentávamos parecer blasés. À nossa frente, a parcela animal da cena era enfatizada pelas patas da cadela de pelos curtos e duros, próprios para espinhar antes a alma do que a pele, ela de coleira com layout fetichista, tachinhas, couro preto e lembranças (dos carinhos e das mãos de pessoas).

“Puxe o rabo deles”, “Compre outro hot dog enquanto observo um pouco mais o animal humano da esquerda”, “Mãe, onde esse bicho se enquadra”, “Ele não olha, mira”, “mais mostarda, please”. Eram essas algumas das vozes e pensamentos que eu pressentia enquanto olhava pra tudo através daquele buraco forjado na pelúcia de forma grosseira, naquele universo passageiro em que o mundo não nasceu quadrado, mas encontrava-se oblíquo e coberto por penugens ruivas aparadas de maneira ordinária.

Pelos 25 dólares, eu finalmente teria o T-Bone e uma Weiss, mas o que eu queria mesmo era comprar um aparelho dentário para Mary Lee. Pena que faltariam mais uns 70 dólares. Eu mentiria que o sorriso dela era belo, portanto.

***

 

 

balanço de um rito não muito bem sucedido

 

Choviam notas xamânicas. Penas dos orixás nos toques redondos.

Plumb, plumb, plumb, para o coração relado.

As chamas coloridas pelos tocos das velas de cento e noventa e quatro dias.

Precipício, crepúsculo, pai Antônio, cobra coral aos pés, e era rápida, listrada ela.

Para comer depois do rito, flores e frutos, água da mina aplacava as visões.

Do suor, a tenda rezada, palavra náusea, plausível, gota, risível, racha.

Mil e uma visões eu ri.

E pulei de astro em pedra, jagunço sem cinta, liga, peguei o carro na estrada miúda, cerrada.

Fui que fui, a cento e oitenta graus por hora arremeti contra o espelho.

No ar, parei no meio, em legítima suspensão Matrix mas sem roupa de látex negro.

A onça pintada virou-me os olhos pra dentro.

De ouro, eles viram pepitas encravadas nas minhas vísceras.

Rico, eu rei.

Raptado, a verdade menti.

Pústulas nas flores murchas, pus.

Pari, parti, patriarcado, proletariado, picto.

Tudo em uma noite, um cocar de luz, aldeia das sete ondas, triste, chefe das sete contas, ralé das boas e aprendiz, com menos 250 reais na carteira, voltei pra São Paulo pela Rodovia Fernão Dias.

  

Cristina Judar é escritora e jornalista, autora das HQs Lina (Editora Estação Liberdade) e Vermelho, Vivo (Devir), ganhadoras do ProAc de HQ em 2009 e 2011. Seu livro de contos “Roteiros para uma vida curta” (Editora Reformatório) recebeu Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014. Em 2015, durante uma residência artística com foco em literatura na Queen Mary University of London, deu origem ao projeto autoral “Questions for a Live Writing”. Atualmente, está em fase de finalização do seu primeiro romance, “Oito do sete”, contemplado pelo ProAc de Literatura em 2014. É uma das editoras da revista eletrônica de cultura LGBT “Reversa Magazine”.

 

 

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