Dedos de Prosa II

Alê Motta

 

Foto: Alê Motta

 

Meu chefe

 

Na reunião ele arrasou comigo. Pela décima vez não aceitou minha proposta. Riu dos meus argumentos. Zombou dos itens que listei. Foi sarcástico.

Esperei que ele terminasse a terceira xícara de café para pedir licença e sair. Meus colegas não olharam. Pena. Vergonha.

Desci os dois lances de escada. Na recepção dei um beijo na secretária. Na porta do prédio comprei um picolé. Na esquina dei sinal para um táxi. No taxi olhei o relógio.Três xícaras. Impossível não fazer efeito.

 

 

 

***

 

 

 

Convite 

 

Minha ex-namorada finalmente aceitou um convite para um cinema. Desde que terminou o namoro comigo eu tentava uma chance, afinal ela ficou pouco tempo com o desgraçado com quem me traiu.

O filme era Guerra Civil. Ela era louca pelo universo Marvel. Minha camiseta a fez sorrir. Pegou no meu braço e fez carinho no meu peitoral.

Antes do filme começar nos beijamos. Vimos todo o filme abraçados. Três segundos após a cena final saí do cinema. Lamentei perder os extras.

Escolhi muito bem a camisa. Vermelha. Homem de ferro. Na rua lotada ninguém notou os respingos de sangue.

 

 

 

***

 

 

 

Órfãos

 

O pai do Valério morreu de câncer. O pai do Sílvio morreu de infarto. O pai da Celeste foi atropelado em Copa. O pai do Joca se jogou da ponte. O pai do Milton morreu de velhice. O pai da Maria morreu de susto – um assalto na Avenida Brasil. O pai do Guilherme foi uma bala perdida no Andaraí. O pai da Glória morreu esmagado por um caminhão na obra do Shopping Carioca. O pai do Soares morreu num acidente de carro na Dutra. O pai da Lenice morreu esfaqueado num bar em Campo Grande. O meu pai foi comprar cigarro e voltou.

 

 

 

***

 

 

 

A velha

 

Passou a vida sentada. O motivo era a existência da televisão. Engordou de não caber em roupa pronta. Vestia uns panos grandes, quase lençóis.

Era feia a velha. Muito feia. Mancava de uma perna. Faltava dente na boca. Os cabelos eram ralos e espetados.

Morreu ontem de tardinha. Engasgada com um pão francês lotado de manteiga. Na confusão do engasgo o canecão de café com leite entornou e coloriu o sofá.

Era feia a velha. Muito feia. Mas era uma avó legal.

 

Alê Motta nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia “14 novos autores brasileiros”, organizada pela escritora Adriana Lisboa. “Interrompidos” é seu livro de estreia. 

 

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