Dedos de Prosa II

Viviane de Santana

 

Foto: Bárbara Bezina

 

A BOMBA

 

Descobriram uma bomba da segunda Guerra Mundial ao fazerem uma obra na proximidade do meu prédio. A polícia passou convocando os moradores, pelo alto-falante, a deixarem suas casas. Na Alemanha, as bombas estão por aí, enterradas inertes no fundo da História, mas chega o momento no qual desabrolham como a gigante semente de uma flor nefasta, despontam da terra como uma enorme melancia enferrujada e repleta de crostas de lama. Mesmo depois de setenta e poucos anos podem explodir. Bombas são assim, não possuem prazo de validade como o pão, o leite ou a nossa vida. Enquanto ela estiver protegida por uma camada de terra como o embrião maligno da morte, ela fica ali, esperando a sua vez de espocar e despedaçar tudo a sua volta. Ouço os passos dos vizinhos descendo as escadas, os automóveis, antes estacionados na rua, deixam o local. O cinza do dia é escuro e chove. O eco do megafone funde o final da tarde. Não sei para aonde ir assim rápido, espontâneo. Devo ir a algum restaurante – longe – e ficar jantando a noite toda? Será que eu seguirei o chamado da polícia para evacuar ou ficarei em casa como aqueles teimosos que não abandonam os seus pertences mesmo com a chegada de um furacão, permanecem implacáveis junto de suas coisas como se pudessem salvá-las com sua presença flutuável, quebradiça?

Com repulsa visto o casaco, calço os sapatos, pego a bolsa, meu livro e o caderno de anotações. Na calçada, pergunto ao policial: quanto tempo isso demora? Talvez até amanhã de manhã! Até amanhã de manhã?! Penso perplexa. A polícia nem disponibilizou tempo para eu fazer uma mochila com a escova de dente, creme antirrugas, uma toalha e o pijama. Tocou a campainha de casa em casa ameaçando: deixe o apartamento imediatamente! Voltei. Regressei para o meu apartamento. Sentei-me no sofá da sala e escuto a mudez de tudo ao meu redor, como se o mundo tivesse se esvaziado. Não posso acender a luz, para não descobrirem que transgredi a regra. Será que sou a única a contrariar as ordens? Vejo a pantomima do vento farfalhando as folhas da árvore diante da minha sacada. Isso me leva a pensar naqueles que vivenciam a guerra, que sentem os tremores da explosão sob seus pés, ouvem o ruído ensurdecedor, que perdem as paredes de sua casa ou o teto, perdem os móveis e os que sobram são cobertos pela grossa camada de cimento pulverizado e seus pedaços, e perdem seus pertences – quando não perdem um braço, uma perna, — a vida.

Não é a primeira bomba a ser encontrada e não será a última. Há milhões enterradas nesta terra e nas regiões mais afetadas pelo conflito bélico daquela época, também são encontradas ossadas de civis mortos plantadas debaixo da cidade, por várias décadas. Eles renascem tão inocentes como morreram. Os ossos são resgatados e levados para um laboratório ou para o cemitério. Suponho que façam um teste de DNA para saber quem é. São tantos ossos ainda dormindo, esperando alguém libertá-los e lhes dar um rosto e uma biografia, e os levar aos seus parentes que agora fazem parte do futuro.

Os artefatos são desativados com sucesso, com exceção de alguns poucos. Acontece de trabalhadores da construção civil depararem-se com um dispositivo, cavando a terra com a escavadora, e ele explodir. Geralmente, são encontrados em terrenos baldios. O governo de Berlim comprou documentos e fotografias pertencentes aos arquivos dos Aliados para a busca de artefatos, e criaram um mapa com as regiões mais afetadas. Será que o piloto de um dos seiscentos aviões que jogaram mais de cinco mil bombas nesta cidade imaginou que ele poderia me acertar? Eu, que não vivi a guerra, não nasci neste país, vivi muito tempo longe daqui, e setenta e poucos anos depois, uma bomba da segunda Guerra Mundial pode me atingir como se a guerra fosse ontem.

Certa vez, o artefato explodiu e escutei na rádio: três especialistas em armamento morreram, as vidraças de alguns prédios se espatifaram, brotaram rachaduras nas paredes. Deixaram mulher e filhos. Quando explodem, apesar de antigos e enferrujados, é com os mesmos vigor e iniquidade, como se todos esses anos a força de destruição da guerra tivesse incubada ali.

Há pouco eu ainda ouvia o chiado das rodas dos automóveis passando ligeiros pela autoestrada lá adiante, o som undíssono dos pneus no asfalto encharcado ecoava alquebrado até a janela da minha sala. Agora nada, apenas o silêncio, parecido com o primeiro de janeiro quando todos dormem de ressaca.

E então, depois de algumas horas, na meia-luz, anotando palavras ilegíveis, a fome me surpreende e vou à cozinha, comer o resto da batata-frita que eu fiz para o almoço. Semelhante aos condenados à morte que fazem a sua última refeição. A bomba pode explodir agora, comigo comendo batatas-fritas. No banheiro, fazendo xixi, torço para que ela não exploda agora que estou com as calças abaixadas sentada na privada. Não é assim quando se está em guerra? Nem ao banheiro podemos ir em paz, as mínimas e insignificantes ações podem se tornar as últimas e tudo é perigoso. Percebemos o quanto as mínimas coisas são essências e o quanto podemos ser felizes com elas, como simplesmente jantar em casa com a família, ouvir uma música na rádio, guardar a louça no armário, tomar banho…

Ando como uma intrusa no interior do meu próprio apartamento. Não há mais alto-falante lá fora, não há mais polícia perambulando pela calçada. A rua está deserta, o prédio está abandonado. Não vejo mais o xadrez das janelas acesas e apagadas, que aparece todas as noites, somente o breu indecifrável resplandece na fachada das casas. E quando a taciturnidade é mais pesada do que aquilo que escrevo, a sensação de fim de mundo me advém, me sobressalta, logo em seguida, desaparece de novo. E depois? Devo pensar na vida eterna? O que vem depois da destruição, do fim? Não sei, só sei do não existir mais neste apartamento, neste corpo, nestes pensamentos. Só sei da abrupta interrupção de mim com esta vida, com as coisas deste mundo material. Talvez eu me torne somente pensamentos gasosos que flutuam no ar, uma espécie de névoa que se evapora ou se transforma em chuva e cai na terra, no cimento, nos telhados, no vidro dos automóveis. Pois não é assim, na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Nós nos transformamos em quê depois de mortos? Não sei para aonde vou quando eu deixar de ser eu incorporada nesta armação de carne e ossos, sangue e órgãos. No fundo, morrer é simples, basta um segundo e, às vezes, nada percebemos; outras vezes, a vida é um morrer constante, repleta de dor e desespero.

Reflito nos especialistas em engenho explosivo trabalhando ao redor do artefato. Certamente precisaram cavoucar cuidadosamente a terra, na região onde o dispositivo se encontra, para liberá-lo do lamaçal. Presumo que armaram uma cabana com cobertura de plástico sobre esta área, para que os pingos de chuva não caíssem sobre o rosto dos especialistas e em suas mãos, atrapalhando a concentração. E também de luz eles precisam, deve haver um grande farolete doando claridade. E no instante decisivo, os especialistas precisam ficar sozinhos, completamente solitários, e assim poucas pessoas morrerem se algo der errado.

Imagino um único especialista enfrentando este artefato de duzentos e cinquenta quilos, enterrado a cerca de meu prédio. Tudo a sua volta foi evacuado, a autoestrada está vazia, os edifícios, o supermercado, o asilo de velhos, a estação de metrô, os prédios, as calçadas. Apenas ele e o silêncio absoluto, ele e a afonia que caiu sobre esta parte da cidade como um manto negro, ele e o isolamento, ele e a solidão, ele e o pipocar dos pingos de chuva sobre o plástico, ele e o suspense, ele e a obscuridade do futuro.

Durmo no sofá da sala. No meu quarto, a cama fica muito perto da janela, e se o artefato explodir o vidro se espatifará em cima de mim, cortando meu corpo, furando minha carne. A sala fica do lado onde a pressão levaria os cacos a caírem para fora, deduzi com os meus parcos conhecimentos de física. Meu prédio localiza-se à margem do perímetro dos quinhentos metros de evacuação.

Tenho o sono leve, meu sonho é uma mistura de vizinhos invadindo meu apartamento, me acusando, me ordenando a sair, e o amarelado claro e forte do sol se derramando na escada. No meio da madrugada, desperto e cogito se seria agora que ele separa a concha entre o impulsor de ignição e o explosivo, com o cortador de granulado de água — e fomos salvos. Meus olhos arregalados vislumbram o escuro como se pudessem atravessá-lo feito um raio. Esse escuro nada me responde. Não é possível eu saber, pode ser agora, daqui a meia hora, duas horas, ou já foi. O que ele pensa neste átimo de tempo preciso com o bafo da morte na sua nuca, instante no qual o seu corpo pode vir a ser despedaçado e pedaços voarem e como um bando de pombas pousarem no chão. As partes espalhadas como em um quebra cabeça imontável. Sentir ele não sentirá, nada disso ele sentirá. Mas possui a consciência. Talvez ele reze, se for religioso, talvez ele pense em sua mulher e filhos, em seus pais, em sua namorada ou apenas se concentra porque a rotina – são mais de setecentas bombas que ele desativou – a prática o fez esquecer que ele é a pessoa que executa um trabalho que toda vez pode ser a última. Como se eu, ao assinar um documento no escritório, corresse o risco de explodir. Pego a caneta, observo o papel profundamente, calculo minha assinatura no espaço exato, preparo a caneta, a minha mão, respiro fundo, concentro-me, penso nos meus entes queridos e — desejo viver e — assino.

Não há como eu saber o lance de tempo exato no qual ele cala a bomba, corta a sua aorta e o monstro morre para nunca mais, — vencido, agora inofensivo, semienterrado na terra como um estranho alienígena de ferro, sem olhos, sem ouvidos, sem membros, somente com a boca fechada, esta boca que ao abrir engole construções e vidas. Não há como eu saber, mas creio que esta bomba não me alcança, esta bomba não me alcançará.

 

Viviane de Santana é poeta, tradutora e ensaísta, autora dos livros, Viver em outra língua (romance, publicação independente, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publica poemas em revistas e jornais, entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Argos e Alforja (México). Atualmente, vive em Berlim.

 

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