Dedos de Prosa II

Danilo Brandão

 

Desenho: Raquel Piantino

 

Vera

 

Desliza.

Desliza.

Ela gritava.

Bem no meu tímpano. Ia longe. Todo o suor do mundo. O seu cuspe que se espalhava.

E então eu deslizava. Dan Brown. Paulo Coelho e algumas americanas de meia idade. Da esquerda pra direita. E meus olhos se esforçaram. R$ 39,90. Não parava e eu não conseguia me concentrar. Calor do caralho. Como fedia.

Seus peitos eram enormes. Pálidos. Flores eram regadas em sua camisola cor de mel. Tetas enormes e molhadas. Pequeno. O quarto era o contrário de suas tetas.

Tinha esse hábito. Meio-dia. Chegava com o pote. Arroz, feijão, bife. O pote azul. Suava. Invariavelmente, suava.

Calor do caralho.

Vera. Vera me encontrou num fim de tarde. Ela me viu primeiro e sempre dizia isso. Estava no banco. Pisava na minhoca. Ela já estava morta. Vera carregou seus peitos até nós. Eu e a minhoca. Desequilibrou-se. Firmou. Pescou meus olhos.

Minhocas não têm olho. Disse-me. Não têm mesmo. Ela jamais saberia.

Eu só usava verbos. Chamou-me pro quarto. O quarto de Vera. Sabia que eu era escritor. Jurou-me que eu era. Então, abriu a Amazon. Mais vendidos.

Desliza.

Desliza.

Calor do caralho. Vera estava sempre ligada nos mais vendidos. Todo dia. Ela abria e anotava o nome de alguma novidade. Comprava todos.

Disse-me que amava literatura. Estava na faculdade e tomava sol. Num fim de tarde. Adorava tomar sol. Os raios nos meus poros. Ela me disse que fazia mal. Fazia. Gostava.

Gostava de literatura também. Bandini, Arturo Bandini. Ri. Ela: não.

Seus peitos eram enormes, de fato. Como o vestido pretendia. Dois olhos enormes a me olhar. Achei que a escreveria em algum dos contos. Era uma boa personagem.  Ela gostava.

Nua. De óculos. Abriu meu caderno. Sem janela. Seu quarto. De novo. Não entendeu a letra, me perguntou o tempo todo. Aquilo me irritou. Fechei os olhos. E por que não usa um notebook?

Mutarelli.

Não entendeu. Nunca tinha ouvido falar. Calor do caralho.

Lourenço é calvo e explicava pra plateia, com os dedos, amarelos do tabaco, em riste, que tinha um caderno. Preenchia-o com qualquer merda, o fedor de uísque no ar. Não se interessou no papo. Mas continuei mesmo assim: quando pintava algum trampo, ele voltava lá, desbravava a merda, alguma coisa sempre se aproveita de lá. Não curtiu.

Stephen King. Estava no topo. Mostrou-me o ranking dos que mais faturaram no ano. Tá certo. R$ 15 milhões não é nada mal. Compraria o Mutarelli e uma camisola nova pra Vera. Riu.

Nua.

Fechou o caderno. Devolveu-me. Eram verbos. Demais. Ação e corte. Corte.

Ia me fazer um escritor. Mestre em fazer adolescentes gritarem no cinema de shopping center. Estava terminando a faculdade. Queria ser escritor, de fato. Vera ia fazer isso pra mim.

Passei as tardes com Vera. Ela já era formada e sabia das coisas. Vera me trancava no quarto. Trazia o pote. Azul. Calor. Às vezes vinha com o que chamava de inspiração. As tetas despencavam. Como pêndulos, balançavam. E os mais vendidos nos encaravam. Eu, pras tetas. Ela, pra eles. Gozava. Depois, voltava a me trancar. Era preciso. Fechava as janelas e o sol sumia. Escritor precisa ficar sozinho.

Tá ruim. Vai, vai, desliza.

Vera caiu numa terça. Uma faca atravessou-lhe as tetas. Era terça e desliza agora vai. Morreu de desgosto. Culpa minha. Ação e corte. Saudades da Vera. Quando morreu, suas tetas estavam no ar.

 

 

 

***

 

 

 

Ciclo

 

Lembra quando sua mãe te lembrou que eu era preto? E quando ela te perguntou se você não percebia isso. E quando ela falou que a casa agora fedia. E que isso era normal porque preto tem um cheiro diferente mesmo. Um cheiro que impregna no estofado da linha alta. E você trazia um preto pra jantar todas as noites na casa dela então isso iria acontecer mesmo.

Lembra daquela vez que eu menti pra você e você chorou por um mês? E ela te lembrou que  namorar preto era assim mesmo. E que em preto não dava pra confiar mesmo. Era normal. Isso ia acontecer mesmo. Tudo isso era pra você aprender. Depois desse dia ela nunca mais conseguiu respirar o mesmo ar que eu. Eu chegava e ela saía. Mesmo assim, eu curtia sacar o olhar dela pra mim. O olhar em direção ao preto que jantava com a sua filha. Eu curtia. Aquela porra era puro ódio e a gente ficava nesse jogo de se olhar e se odiar mutuamente. A atmosfera da casa pesava quando o preto chegava. E isso eu também curtia.

Você sempre me disse que ela era uma boa pessoa mesmo assim. Que aquela parada era cultural e pronto. Não era nada pessoal. Não era um racismo fodido desses que eu tropeçava na rua todos os dias. Desses que me fazia ser acusado de entrar em um lugar. Era uma mais leve. Quase calmo. E eu quase me convencia disso. Até eu olhar o olhar dela e a gente recomeçar nosso jogo.

Acho que foi sua mãe que terminou com a gente. Você disse pra ela que me amava, apesar disso. E ela não entendia nada. Tinha te educado e te pagou escola particular até o final do ensino médio. Tinha tanto menino bonitinho na sua sala, ela te dizia. Um dia peguei ela dando socos no ar. Ela chorava igual criança quando se perde dos pais. Ela murmurava com a boca torcida para os próprios ouvidos. Ela se perguntava aonde tinha errado pra filha gostar de preto.

E o seu pai tentou acalmá-la. Levantou-a. Deu três tapas de leve em sua cabeça e beijou sua testa. Ele olhou pra porta e me viu lá. Ele procurou minha essência. Olhava o mais profundo que seus olhos rasgados podiam chegar. Cavava-me. Entendi que aquilo era um pedido de desculpas. Acenei e fui embora.

Quando descobriram que o primeiro namorado dela era preto e que sua avó a trancou em casa por semanas até o seu avô dar um jeito no preto, eu senti pena. Mas curti. Eles disseram pra ela que o preto havia se casado com outra e que era assim que deveria ser e que preto era assim mesmo. E ela engoliu a lorota e ficou por isso mesmo.

E eu te disse que colocaria sua mãe nas minhas histórias. E que ela havia mudado minha vida e você só dava risada. Mas eu te disse. E eu coloquei. E você me disse pra esquecer. E disse que amava. E eu disse que eu também. Mas eu menti. E quando a gente finalmente terminou, eu curti. Era o ciclo. Mas sinto falta do olhar de sua mãe.

 

 

 

***

 

 

 

Cisto

 

Brotou um cisto na minha orelha e ela está de papo com o cabeludo de novo. Descobri que não sei escrever histórias longas. Não tenho imaginação. O resultado do concurso saiu. Na Paraíba minha prosa não é muito popular.

As primeiras palavras brotaram de novo. Uma a cada minuto. Deve ser o cabeludo e eu preciso deixar meu cabelo crescer. Ficar com cara de autor. Entrar pro meio e chamar o editor no inbox. Elogiar sua revista. Sua curadoria refinada e, aí sim, seria popular na Paraíba.

É preciso ser popular na Paraíba. Cada um ganhou uma menção honrosa na câmara municipal. Dez exemplares, um pra cada. Só.

Muito bem, editor. Bela revista. Tem um cantinho de página pra mim? Eu deveria me preocupar com o cabeludo. Não posso deixar meu cabelo crescer, brotou um cisto na minha orelha.

Descobri que só sei falar de mim. Autoficção está na moda e os premiados já a desprezam. Jogam tudo no mesmo bolo. Chamam de merda narcisista. Ok. Eles são populares na Paraíba. Estão certos. É preciso ter imaginação.

Vi uma foto de Guimarães com os jagunços. Vi um filme de Hemingway no bar, no meio de Cuba, tomando cachaça com os pobres. É preciso ter imaginação. Mas brotou um cisto na minha orelha e não posso deixar o cabelo crescer.

O cabeludo toca violão. Deveria aprender a tocar violão, ficar com cara de autor que toca violão. É uma boa ideia escrever e tocar. Um homem com imaginação. Vi no jornal que o premiado leciona música na universidade. Toca violão e ganha prêmios. Deve falar francês. E essa é outra boa ideia.

É preciso ser popular na Paraíba. Não sou do meio e aí fica bem difícil mesmo. Falta o enredo. Mete lirismo nessa prosa, rapaz. Sobra lirismo na Paraíba. Ele é premiado, o cabelo é grande, escorrido, cabeludo, toca violão e deve falar francês. Pronto. Lirismo.

Poesia. É sempre bom ser poeta nas salas do departamento de música. Músico com cara de autor, premiado, cabeludo, arrastando seu violão.  Fala francês e conjuga verbos corretamente.

Parece uma boa ideia. É legal ser autor com cara de autor. Os editores colocam a foto embaixo do conto.

Chegou um e-mail. Um convite. É um curso. Escrita criativa. O professor-autor desta vez não tem cara de autor, nem de professor. Não é cabeludo e como eles podem vender uma coisa dessas? Se vou pagar por um curso de escrita quero um autor com cara de autor. Cabeludo. Mínimo. Serragem no rosto. O professor-autor que ensina que editoras estão fora de moda e que o negócio é fazer os cursos que, aliás, ele mesmo dá. Auto-publicar-se-ei. Fazer um evento. Chamar seus amigos – não esqueça de seu professor. Ganhar vários tapinhas nas costas. Não vendeu. Resistiu.

Brota mais três mensagens do cabeludo no celular dela.

Vou operar do cisto e deixar meu cabelo crescer.

Ele dói.

 

Danilo Brandão nasceu em São Paulo e mora em Londrina, interior do Paraná. É estudante de Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Tem textos publicados em sites, revistas e jornais literários.

 

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