Dedos de Prosa II

José Carlos Sant Anna

 

Foto: Adelmo Santos

 

Pela janela aberta

 

Se um peixe entrar em sua casa sem bater, não estranhe ou fique nervosa, é porque, pé ante pé, ele resvalou o corpo para fora da tarde e porque claramente cansou do lago artificial em que vivia enclausurado. Há sinais e testemunhas do licor evaporado do seu hálito quando ele passou pelo átrio da igreja e o andar era um bálsamo para aquele espírito inquieto. Antes, ao passar pela porta, exclamou “que lugar maravilhoso”, e sorveu um pouco de paz com os belos vitrais que se realçavam em ambas as laterais da igreja. Parou, pensou e concluiu que o ar era solene e a igreja (talvez) seria pequena para remoer as inquietações metafísicas que sacudiam a sua cabeça na deambulação vespertina.

 

 

 

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Minhas ostras

 

Vira e mexe as ostras desfilam pela calçada da praia do Bogari, calçando sapatos coloridos, como se nunca tivessem sido colhidas pelos meus apetrechos de pesca nos arrecifes. Quando tal acontece, quase sempre, remexem no meu antigo baú. São meus espantos guardados, sem chave, justo quando finjo não pensar em nada. As ostras giram o tronco em minha direção e, solícito, digo-lhes que se acomodem ao meu lado, no banco de areia da praia. Sentadas, me falam do que viram e ouviram, quando presas nas formações rochosas, próximas à costa, tornando-se muitas vezes cúmplices de algumas histórias. E ficamos, então, eu e elas, sob um céu estrelado, à beira de outro instante. No meu íntimo, uma estranha magia. A casa dos meus pais, a poucos passos. É do útero do tempo que elas ressurgem, que brotam. A pele arrepia, a alma cintila. E as ostras passam, ficam e se fincam em mim, pois, ainda que mortiça, trazem sempre uma claridade, como se fosse a luz de uma vela. Pedaços de saudades da ponta do mar, da península de ontem, cirandas de histórias que nunca chegam ao fim, um show de vaga-lumes por todos lados que estilhaçam o ar, abrem o armário e vão aquecendo, sem pressa, as esquecidas paredes da memória. Aproveito a lassidão que nos acolhe e vou também abrindo os olhos, as mãos, o corpo, enquanto elas parecem dizer-me que já não preciso correr contra o relógio. Contra o tempo. Aquecidas, as ostras ensaiam uma canção praieira do Caymmi para a noite que avança madrugada a dentro. Suspiram e se afastam. Não consigo desviar meu olhar dos moluscos que se distanciam lentamente, tampouco me ocorre o que ainda queria dizer…

 

 

 

 

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Quase triste

 

Como se eu ainda tivesse o alaúde. São outros os tempos. E rubro ou incolor são os pingos da memória, sem pés ou asas para sustentá-la. Um eclipse. Pular da cama sem fazer nenhum escândalo pode safar o véu da boca de Madalena. Melhor é que não o faça. Seria como, a contragosto, apanhar um viscoso metrô, sem conhecer as linhas e perder-se nos atalhos das begônias no meio da clorofila dos executivos da classe média, bolinando os rastros no teu corpo salgado. E estão perdidas as fagulhas da piscadela, como um voo da infância? Esqueceu? E a minha alma reserva, entre copas, pergunta: “O que é que houve, Madalena?” “O que é  meu não se divide”. É o olfato que irriga meus países baixos, por isso me falta talento, incenso e girassóis para este desespero nas ruas vazias sem o meu amolador de facas. E quanto o velho poeta ficaria surpreso ao ver-me atritando as nuvens ou na vertigem dos pés em botão nas míseras cadernetas do armazém da esquina. O filho da mãe, no pasto das estrelas, sempre acrescentava um pouco mais nas contas da semana. E como ainda somos precoces na hora do choro da saudade, para depois tudo perdermos na aposta. Me espera, vai, me espera! Ainda podemos gozar juntos, Madalena, como uma pele de orvalho na madrugada. Ou como num poema bem resolvido! Ou então durma! O desamparo é uma traição das marés, e o teu médico, cubano, não fala bem o português. E tem mais, sem a luz do teu sol, confesso este meu fado de poeta a emoldurar o fugaz, enquanto a fumaça do cigarro sobe e se perde pelas frestas das telhas da cumeeira da casa.

 

 

 

 

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Desamparados

 

Acabamos por nos acostumar com tudo, mais cedo do que esperamos, dizia Joaquim para si mesmo como um pragmático pensador, primeiro enrolando um cigarro com as folhas da sua estufa particular, depois com a lupa do seu tempo de estudante nas mãos, mergulhado nas águas fundas da antiga convivência, como se o mar, que sempre o apetecera, andasse no ritmo da cadência do mundo por entre as árvores toldadas por estranhezas humanas, enquanto ele examinava, inata curiosidade, um inseto que tecia no espelho uma canção inspirada num poema de Drummond. Verdades que se escondem mal finda o arrepio da tardança e da solidão, sem que Joaquim saiba o motivo das aparências das coisas porque não consegue desprender-se dos ferrões feitos do nada que sangram a sua pele. A cadela destrambelhou a vida da casa, tal qual um incêndio num açude em noite de tempestade. A cantoria das crianças, alegrando a casa, bem poderia ser uma esperança, uma aurora, que coubesse no céu daquele homem no colo do dia, mas, ao contrário, provoca náuseas, um tremor nas mãos que o engole aos poucos, levando-o para bem longe de si mesmo. Folha levada pelo vento. E a cadela parece segui-lo. As mais fundas águas e o bicho a segui-lo no jeito de ser sem jeito, desencanto da vida. E quanto mais se revela esse jeito cambaio dele ser, se vê mais longe, sem descobrir as verdades avaras ou que outro nome tenha as intempéries que amanhecem sob os túneis da escuridão completa. E chama a cadela para a vida que ainda não viveu, para as estrelas que não se cansaram de riscar o céu. Para as sobras da infância. Joaquim molda os músculos na barra de ferro que o seu pai instalara no meio do corredor para este fim. Vapt-vupt, enfia as calças, veste uma camiseta e sai para abrigar-se na amurada do mar anilado olhando os surfistas se empinarem nas pranchas nas primeiras ondas da manhã e os cães desamparados que rosnam com a orla negra lambendo suas patas ao expandir e retrair-se no seu fluxo contínuo sobre a areia da praia. E nenhum pormenor da boca da manhã escapa aos olhos de Joaquim que virgulam os matizes azulados do horizonte que não se escrevem com palavras.

 

José Carlos Sant Anna é professor aposentado da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é o editor da  Quarteto. E já andou publicando os seus alfarrábios pela vida afora.

 

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2 Comentários

  1. Quando a criatividade exuberante se alia a uma preciosa qualidade de escrita, só pode resultar em excelência.

  2. Obrigado pelo olhar e comentário.

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