Dedos de Prosa II

 

Pintura: Sylvana Lobo

 

AFAGO

Fábio de Souza

 

Ele ressonava, de modo que pude surpreendê-lo com o afago delicado na nuca suada. Parecia ser sempre assim: quando ansiávamos algo, vinha a tal necessidade do corpo do outro, como se daí fosse provável extrair não o calor, ou a aspereza da pele, mas um pouco da nossa própria subsistência, do afeto que nos garantiria um pouco mais de tempo, sim, essa urgência toda a nos impelir ao toque. Da janela, todas as tardes, era possível sentir o dia inflamar-se de um calor que segregava essas horas insondáveis à beira do sono, quando tudo o que tínhamos era que aguardar que esses corpos aí arrancassem um do outro um certo gozo sofrível, quase às raias da inanição. Para então desabarmos, como se ruísse a carne. Nessas horas me esquecia de quem eu era, se homem ou mulher, para experimentar daquele ranço à beira do sono. Ali mesmo. E desconfiava se de mim não se esvaia a vida, sem que eu sequer a sentisse. Beijei-lhe a fronte, então. Um gesto providencial, como se a reafirmar minha própria existência ao seu lado. E notei que ele ainda dormia. Num timbre aveludado, quase um sopro a afetar-lhe naquela iminência insuspeita, tão imerso que ia: “vamos, acorde”, eu disse…

 

 

***

 

 

ESTRANGEIRO

 

No pesadelo da noite anterior eu morria nessas paragens. Velho e só, feito agora. Uma tarde igual a essa, quente e de brisa nenhuma, o ar como que estagnado. Um mal que me acometia num desses repentes. Me levava até a última memória. E lá ficava eu, oco por dentro, minguando sob aquele deserto todo, azul e ofuscante, qual esse que já me assola o juízo. Piso o cimento, ensaio palavras numa língua que mal sinto o gosto. Tarde de domingo, acho. Caminho a passos omissos. A estação rodoviária deserta. Penso se chegaria ao fim de tudo. Esqueço o propósito de minha viagem até ali. Deixo de buscar o endereço horas depois, mais ou menos quando me perdi. Mais ou menos nesse instante, quando resolvi entregar os pontos e ceder. Sim, mais ou menos aí, quando eu já não tinha mais forças para exigir coisa alguma de minha vida àquela altura. De modo que sentei. O banco de pedra de meu pesadelo. E esperei, sobre o dorso das horas. Esperei que algo me ocorresse. Uma puta dor no peito…

 

(Fábio de Souza é escritor. Nasceu em Cuiabá, MT, em 1987. É colaborador dos coletivos literários “Dona Zica tá braba” e “Filacantos”. Reside atualmente em Brasília)

 

 

 

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2 Comentários

  1. Fábio,
    Contos curtos e tão densos. Na rodoviária me apavorei, esperando pelo pior. Ufa, ainda bem!
    Paz & Luz
    Neuzamaria Kerner

  2. Neuzamaria,
    Que bom que tenha gostado. Fico muito grato por sua leitura atenta e precisa. Um abraço. E até a próxima.

    Fábio de Souza

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