Dedos de Prosa III

Vera Helena Rossi

 

Foto: Rosa De Luca

 

REMEDIADO ESTÁ

 

“Pharmakon, o amor é pharmakon.” Assim se apresentou à garota e à sua lata vazia de cerveja. A garota não era bonita ou feia, gorda ou magra, mas se fechava em uma indefinível vontade quando conduzia a lata de cerveja à boca, o que de imediato o conquistara. Percebera-a no intervalo breve entre o quarto e quinto gole longo de vodka. Ela bebia-se sozinha no canto mais escuro do bar, meio em pé, meio apoiada na parede. Os quadris se sustentavam largos demais se comparados ao resto, tão estreito.

— Pharmakon, o amor é pharmakon. — continuou, com uma pronúncia desastrada.

Ela não sabia grego, achou-o inteligente. Ele conhecia apenas aquela palavra, com a qual se bastava, porquanto o encerrava em remédio e veneno.

— Pois é, é pharmakon — se insistiu, a se ajeitar no tom de voz mais inteligente, acreditava — É veneno, ao mesmo tempo que é remédio. É remédio, ao mesmo tempo que é veneno.

Por fim, ela emitiu algum som:

— Que bonito. De quem é?

— Henrique Almeida. Prazer. E você, qual é sua graça?

— Eu, ah, Helena.

— De Troia?

Ela riu, com a certeza de que conversava com alguém inteligente, ou ao menos, não tão estúpido. Procurou se acertar nas palavras do outro:

— Apenas Helena. Henrique, hum, hum, bonito nome. — inclinou a cabeça e arregalou os olhos e o sorriso — Mas não concordo.

— Com o quê?

— Que amor é isso aí que você disse. Como é que é mesmo? Farma… farma…

— Pharmakon — atropelou.

— Isso. Pharmakon.

— E o que é amor pra você?

— Ah, é… Hum…é. — tremeu o lábio superior com um suspiro involuntário — Ora, sei lá eu o que é amor pra mim. Só sei que é bom, que é puro. Imagina só, veneno, tá bom, então. — balançou os ombros e jogou longe a latinha vazia. Voltou-se a si e ao seu amor puro. — Só sei que falta amor no mundo, isso sim. As pessoas já não amam mais. Acham que amam. Mas o amor é puro. — cruzou os braços. — e bom. — se completou, feliz com a definição exata do que não se sabia se definir.

— As pessoas precisam amar mais, isso sim. Daí sim, o mundo seria outro. — completou-se, já boa e pura.

— Sinceramente. Não entendo essa mania de querer sublimar o amor. O amor é bom e ruim. Como o homem, bom e ruim.

— Não. Não concordo. — riu nervosa. — O amor é bem melhor do que o homem.

— Como algo sentido pelo homem pode ser melhor que ele? Não. Não. Você está errada. Não dá pra achar que o que sentimos é melhor do que nós. Somos bons e ruins, ambíguos na maioria das vezes, exatamente iguais ao que sentimos. — respirou apressado, vitorioso pelo argumento perspicaz dito assim, tão displicente, em um bar ordinário. — Essa mania de querer sublimar o amor. Não entendo. — se repetiu na frase de efeito.

Os dois se desentendiam. Não sentiam o mesmo amor. Ela se apoiou no quadril largo, enquanto ele retornou ao sexto gole da vodka. Pouco se ouvia do silêncio de ambos, preenchido por fragmentos de conversas e risadas entrecortadas. Por fim, ela arriscou:

— Mas … e o amor de mãe? Quer coisa mais sublime do que amor de mãe?

— Minha mãe me expulsou de casa quando tinha quinze anos, por causa do meu padrasto, que não gostava de mim. Isso por acaso é amor sublime?

— Tá bom. Tá bom.  Você venceu. O amor também é veneno. — já não aguentava aquela discussão. Tampouco o suportava. Algo nele a lembrava de que também não era pura. Nem boa. — Vou comprar mais cerveja. — tentou se esquivar.

— Permita-me pagar uma pra você. Faço questão. — persistiu o outro.

Andavam os dois lado a lado, olhos apontados para frente ou para o chão. Mais afoito, ele desafiou:

— Você nunca sofreu por amor, acertei?

— Como? – ela se assustou

— Você. É muito inocente, acho que nunca sofreu. — voltou os olhos para o chão.

Ela quis lhe dizer que se casara aos dezoito anos. Mas se o fizesse, também teria que revelar que já era viúva, aos vinte e três. Preferiu concordar, com o corpo solto, que não, nunca sofrera.

— Sabia! Um dia, Helena, você ainda vai concordar realmente comigo. Ainda vai descobrir que o amor é pharmakon. E vai se lembrar de mim. — encheu as últimas palavras de ar e de orgulho, um orgulho quase débil.

Chegaram ao balcão, mais cansados. Ele virou-se ao amontoado de pessoas em frente ao balcão e imiscui-se nos muitos braços estendidos com a comanda na mão. Ela se largou no único banco vago que encontrara próximo a eles. Cruzou as pernas, mais contrariada. Não queria cerveja ou qualquer outra discussão idiota sobre o amor. O que sabia ele do amor, afinal? Que chato! Mas ela não poderia lhe falar do sofrimento. O chato não estaria pronto. Ninguém estaria pronto para ouvir o que ela ocultava sob o movimento largo dos quadris. Se bem que, lá no fundo, ela desejava desvendar seu segredo ao chato. Queria ver sua cara quando lhe dissesse tudo. Como queria! Seria divertido vê-lo prostrado ao saber que ela já sofrera de amor sim senhor. Que já amara o homem mais bonito que alguém pode conhecer. Que já largara tudo por causa deste homem. Rangeu os dentes de raiva. Um homem tão bonito. Como se permitia ser tão bonito? pensou, enquanto aguardava sem vontade a cerveja e o chato servidos pela mesma mão. A raiva atingia algum ponto entre o peito e o ventre. Imaginou a cara do chato quando soubesse de tudo e soltou um ruído baixo. Continuaria o chato a ser inteligente se soubesse que ela, naquela noite, ferveu a água? Sim, que ela, naquela noite, deixou que a água quase evaporasse de tão quente e a jogou no ouvido dele, sem que ele tivesse tempo a pedir perdão. Não, palavra grega nenhuma definiria aquela noite como ela o definira repetidas vezes a si mesma. O que pensaria o chato se soubesse de tudo?

— Sua cerveja! Está bem? Parece tensa.

— Meu corpo está um pouco dolorido hoje. Mas vai passar. — segurou a lata gelada pelo guardanapo que aos poucos se esfarelava e tartamudeou — Tenho uma coisa pra te perguntar.

— Todo ouvidos.

— É verdade aquela história da sua mãe e do padrasto?

Ele engasgou-se constrangido e segredou, quase mudo:

— Não.

(Vera Helena Saad Rossi é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutoranda em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Venceu o concurso de contos SESC On-line 1997 e foi finalista, com o romance “Estamos todos bem”, do IV Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Recentemente, publicou o livro de contos “Mind the gap” (Editora Patuá))

 

 

 

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