Dedos de Prosa II

TRADE LIGHTS

Márcia Denser

 

Foto: Peterson Azevedo

 

Adriana,

23:00 horas. O relógio deu uma volta completa sem que eu pudesse detê-lo, de forma que inapelavelmente é noite outra vez, ou seja, um insulto, golpe desferido à traição pelos ponteiros do relógio, bicos vorazes a perfurar-me miudamente e de vários pontos da cidade, notadamente os luminosos.

No entanto, restam-me ainda alguns ínfimos prazeres, como contemplar teus lábios quando pronuncias meu nome, traçando no ar a curva palavra de sempre. Tu, sem o saber, me devolves ao rol dos vivos, suave e abstrata Adriana, ainda a sobrescritar envelopes endereçados ao ilustríssimo senhor Raul Kreisker, num papel cujo timbre evoca remotamente uma ave (águia? escaravelho? a impressão é péssima) contudo quanto te sou grato pela delicada omissão do meu segundo nome, o ominoso Nepomuceno, omissão que não exclui a piedade, bem sei, como uma lembrança que se apaga cada dia mais um pouco, prenunciando o genuíno esquecimento, and yet, and yet…

Todavia não te parece absurdo estar escrevendo a apenas algumas horas do nosso encontro quando o mais sensato seria recorrer ao telefone, bastando esticar o braço, usar o, digamos, bom senso, perguntar como está, se queres ir ao cinema, puxa faz um frio do capeta, tenho saudades mas não, obstino-me a não ceder ao código imposto por este objeto que muda a forma mas não permite variações do alô fatal mesmo porque o que preciso te dizer não começa assim, é um pouco como o teu corpo desnudando-se sob minhas mãos e o fato de você tê-las guiado me lembrar extraordinariamente essas excursões onde está tudo previsto, das visitas aos monumentos às gorjetas, sem contar que também tinha algo de peregrinação a santuários feita por beatas em idade  provecta (imagina o teu Raul num xale trescalando a naftalina, vela entre os dedos, o transe apoplético). Como se incontáveis peregrinos não me tivessem precedido, e uma nova multidão já não pressionasse às minhas costas para cair fora do sancta santorum do teu corpo obcenamente branco e lascivo e ainda querendo acreditar ser o primeiro, único e último tolo a te possuir – eu e meus pudores provincianos, eu, o deflorado a depositar minha flor murcha sobre teu altar, esquecido que já corre o ano de 1995 DC. e do que mais particularmente me interessa, isto é, o travo amargo na boca, a contração na alma e – já que estamos no assunto – a tua indiferença é alguma espécie de distinção? É com isto que contemplas mesmo o mais ocasional dos teus amantes?

Porque sequer isto, Adriana, não te serviste de mim, nem permitiste que eu o fizesse negando-me a loba faminta que ronda tuas insônias, tantas vezes falamos nela como dessa culpa acorrentada que ata tantas mãos, que silencia nossa boca, esta culpa que anda por aí e que parece ter existência própria junto à trôpega humanidade da qual, se não fazes objeção, ainda faço parte.

Não negue, Adriana, havia uma sentença sobre minha cabeça – pelo arco triunfante do teu orgasmo eu não passaria a despeito da alucinadas ternas furiosas arremetidas do meu membro exausto: mais fundo te penetrava, mais fugias, me devolvendo a mim, a quem retornava ainda mais só e nu e perdido. Era como se percorresse interminavelmente um túnel ao fim do qual me esperasse uma escada que bruscamente morresse no nada, um vácuo sem chão, sem teto, sem limites previsíveis e sempre o mesmo tema a se repetir insuportavelmente nada, nada, nada.

Assim seja, Adriana, assim foi e nada (sim, nada) poderá mudar este vertiginoso martírio (perdoa esta linguagem, este devassar daquilo que, de outra forma, seria uma amálgama de sons indistintos, disto que intraduzivelmente no engolfa neste cotidiano feito de contas de luz e extratos bancários, esta hidra a que chamamos realidade, não?).

Ah, minha suave e abstrata Adriana, não premeditei este encontro, acreditarias? Que aquela noite eu quisesse unicamente a ti? Apenas não sabia ser tão tarde, tão inútil.

Sim, te dou o direito de falares em auto-piedade e o mais: tens a ti mesma e ao teu querido Francisco, lá no Midwest – aquele envelope azul no tua cabeceira, a letra era dele, não?

Depois fiquei imaginando o que poderia conter esta carta à qual sequer aludiste porque, veja Adriana, não pensas que escapou-me por detrás desta dupla negação (porque antes foi  teu corpo, eu ainda sei contar) do teu velado riso perverso de quem agita o osso diante do olhar molhado dum cão.

Minha dríade, se ao menos me tivesses negado três vezes eu te perdoaria, atento que sou aos passos do Cordeiro, todavia foram duas e, de resto, o que poderia esperar de ti, tão geminiana e dupla e ainda por cima com Mercúrio perfidamente empoleirado sobre o grau 19 de Gêmeos, a cavalo do teu ascendente, maldito doppelgänger, são quatro, são oito, são infinitas em tua casa de espelhos e, a propósito: qual delas é a imortal? E qual a que mente? Dos teus infinitos de perversidade… Ah, sim, as mulheres são criaturas esplêndidas, como gatos ou papoulas, guardiãs do que não sabem, feiticeiras do Grande Silêncio Estuporado, pisando distraidamente sobre envelopes azuis do Midwest, afrouxando sagrados laços impronunciáveis.

Lembra-te (e isto é uma ameaça), ainda sou o Inquisidor da Treva, o Destruidor Florido, então como negar-me a co-autoria de um ato consumado a dois? Acaso ficaste boba? Ou acaso fiquei eu? Hein? Optando pela segunda hipótese, inclino-me a confessar que me recuso categoricamente a prosseguir no papel que a vida inteira me propus (não ria, por favor) porque afinal de contas, minha cara, falando francamente, diga-me se viver por procuração não é um péssimo negócio? Deixar que as coisas aconteçam sem jamais dar as caras (e as costas) ao destino? E, por favor, esqueçamos a demiurgia, um homem se esconde porque tem medo e é tudo.

De modo que, desde o começo estavas certa, Adriana, não havia mesmo ninguém ao teu lado. O que julguei ser um triângulo (você, Francisco e este seu criado) desabrochou num terrível pentagrama: cinco são as pétalas da rosa, os dedos das mãos, as pontas da estrela do demônio, o número sagrado de Hermes três vezes Trimegisto, quintís e biquintís proliferam nas cartas estelares de Mozart e Van Gogh (Francisco, a esta altura, estará rindo, olá, Francisco, meu velho! Tão cioso quanto imodesto do próprio talento, diga-lhe isto assim que puder, por favor. Estás autorizada a fazê-lo. Eu deixo…).

Ah, Adriana, finalmente! Como aquele sujeito que não conseguiu fazer ponto algum na loteria esportiva, posso proclamar: esta máscara tornou-se meu verdadeiro rosto! Talvez seja por isso que te desejo ainda mais, já te disse, não? Não, não disse.

Doravante tu e Francisco são para mim a mesma pessoa (por obséquio, não me interrompa) – não a contraparte masculina e feminina, não é tão simples, diria antes que ambos são simétricos: opostos, mas perfeitamente iguais, correspondendo-se num salutar intercâmbio de livros, flores do campo, rótulos de vinho, passagens de trem, postais e originais extraviados, do que estou rigorosamente excluído, salvo na condição de personagem ou fantasma ou ambos.

Não. Ele não me mandou dizer uma só palavra para que minha alma seja salva.

Treva, silêncio e o vento a agitar os arbustos em torno do parque que avisto da janela deste hotel, aliás muito recomendável para suicidas.

Lembra daquele almoço em casa de Miranda quando, na volta, nos assombrou uma sinistra construção à beira da rodovia com a tabuleta “Hotel”? Júlia foi a primeira a falar: “Lugar ideal para suicídios. Principalmente por causa da placa. Está claro que isto é um hotel. Tão absurdamente hotel que o dono nem precisava comunicar-nos por escrito, o mesmo que botar placas explicativas em tudo, como mesa, cadeira, poste, Raul”. Rimos. Tu, Belisa, Francisco e até a arquiduquesa-ao-volante que no seu afã de arquiduquesa voltou-se toda para o banco detrás, permitindo, ato contínuo, que o automóvel coincidisse com uma valeta pouco menor que a fossa de Mindanau. “Par delicatésse ainda vai matar a todos nós”, gemeu Belisa que abomina qualquer entidade ao volante. Lembrei: “Nos romances ingleses do século XVIII todas as estalagens se chamam Star and Garter”, e Belisa, “e todas as matronas lembram um pudim de franjas”, e Júlia, “já Ulisses é infinitamente chato”, e provocando Francisco: “Também detesto Virgínia Woolf. Consegue ser ainda mais chata. Quando as mulheres entram numa parada, ganham longe…”, donde se seguiram quarenta e cinco minutos dum implacável e minucioso elogio do Passeio ao Farol (  só agora percebo que neste nome um presságio) até porque Francisco  sempre morde a isca, tendo a bondade de nos excluir da conversa, dirigindo-se ostensivamente à Belisa e à arquiduquesa que concordavam entre divertidas e irônicas, já esquecidas do “Hotel”, embora Júlia e seu olhar cúmplice me fizesse saber que não, que nada seria esquecido.

Uma última inconfidência, minha pomba: quem é Maximilian? O nome cem vezes garatujado naquele teu caderno ginasiano? Teu novo amante? Não te preocupes, nada direi a Francisco, e mesmo que o faça, tenho impressão que nem ouvirá, últimamente suas cartas mais parecem esses diálogos de surdos.

Na última falava duma luz azulada, ou melhor, absolutamente não falava de luz alguma, contava uma história de fantasmas ou algo assim, todavia quando terminei a leitura, a atmosfera estava embebida de saudades e tristeza e desolação e todas essas palavras cujo frio espectro envolvem o sofrimento de alguém mergulhado no azul longínquo das pradarias do Midwest.

Então era quase natural que eu me sentisse como Jay Gatsby, como alguém a cumprir uma invisível lei não escrita, precisamente como Gatsby ao divisar, pela primeira vez, na luz ao extremo do ancoradouro, o farol do destino.

Ele (assim como eu) viera de muitíssimo longe e seu sonho, naquele momento, deve ter-lhe parecido tão próximo. Ambos, ainda que em extremos opostos (talvez minha luz fosse azul e não verde como a de Gatsby) acreditamos na luz distante, num esplêndido futuro que, sem saber, ano após ano, nos afastava um do outro (a mim e a Francisco) obrigando-me incessantemente a retornar, voltar ao passado, refazer o sonho gota a gota, tentar possuir uma mulher ou outro homem quando é por ele, apenas por ele, unicamente por Francisco que meu corpo arde em febre.

Exatamente como Gatsby: eu e meu segredo, eu e meu destino, minha irremediável servidão.

………………………………………………………………..Eternamente seu, Raul K.

 

 

(A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), A ponte das estrelas (Best-Seller, 1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II – obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas. Dois de seus contos – “O vampiro da Alameda Casabranca” e “Hell’s Angel“ – foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que “Hell’s Angel“ está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo)

 

 

 

 

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