Dedos de Prosa III

José Pedro de Carvalho

 

Ilustração: Denise Scaramai

 

Ela

 

Uma porta se fecha quase que solenemente atrás da mulher, que se despede do cômodo como quem abandona um passado. Àquela altura, o quarto atrás do seu calcanhar escapara definitivamente de alcance. Do lado de fora, na rua, caía uma chuva, indômita, gris, que frutificava as propriedades sinistras do lusco-fusco. Num rompante, atravessou de uma calçada a outra se desviando dos carros congestionados e caminhou precipitada sob as marquises.

O café, atabalhoado de gente, parecia não se incomodar com a imagem da mulher revirando sua bolsa, arrancando lá de dentro um maço de cigarros amassado e molhado. Trêmula – de frio ou por consequência da decisão tomada há poucos instantes –, com a carranca pálida, manchada de maquiagem, mal sustentava o cigarro. A boca, miúda e fina – um traço, borrada da cor que deveria ser dona, tragava e lançava lufadas mortiças. Pediu e serviu-se de café com uísque. A luz, débil, que pendia sobre sua cabeça, estampava no cenho, mais acentuada, as expressões dolentes.

A noite rompeu imperiosa em sombras e néons. A calçada, molhada e suja, refletindo os faróis, era ferida com o pisar do salto trôpego, escarlate, envernizado. Os pedestres se esbarravam inevitavelmente. A mulher passava alheia a isso, heterogênea à massa. Sua dor não vestia seu corpo e ela cambaleava rua adiante. Seu trote, pasmódico, mole, não escondia – pelo contrário, alarmava a curva desenhada em seu dorso, arquejado, inflexível. Que mulher doente! Pensaria qualquer um se a notassem.

Uma mão se estende e prontamente pára o ônibus. Sobe. Parte saculejante o transporte carregando os conflitos e alegrias dos corpos de seus usuários. Para ela, o ônibus parece se arrastar. A criança, debruçada no banco da frente, exibe um sorriso que não pode ser para mais ninguém senão ela. O ônibus desce vertiginosamente a ladeira. Ela sente um gelo na barriga e chora.

 

 

 

***

 

 

Insônia

 

Havia apenas os sons das coisas não vivas a quebrar o silêncio da noite – a reverberação de um rugido mortífero em toda a casa. O banheiro tinha um vazamento que nunca cessava – tic, tic, tic, tic. O estômago da geladeira ronquejava de uma fome insaciável. O chiado de um rádio dessintonizado estava presentemente no ar, mesmo quando desligado. A TV, que projetava as realidades e as fantasias de toda a gente de todo o mundo, estalava-se – tac, tac, tac. O chão de madeira estalava – tac! O teto berrava como se fosse desabar, embora jamais o fizesse. O microondas apitava, continuadamente, contando as horas.

Um som inusitado sobressaltou-se da permanência eterna daquele rugido e chamou a atenção de Peter Harvey. Não era exatamente um miado, mas um ronronar sardônico. Harvey esbugalhou as insones órbitas de seus olhos ao máximo que pôde e escrutinou toda a grandeza de seu kitnet até que encontrou um gato, com o rabo em riste, a encará-lo. Um gato?, ele se questionou intrigado, ainda que seguro da impossibilidade da presença de tal animal em sua casa. Balançou a cabeça em desaprovação do seu próprio pensamento ou como se tentasse ofuscar a imagem do gato ronronante da sua mente. De fato, a imagem desapareceu, mas ainda rondava naquele apartamentozinho de um só vivente o ronrom do felino.

Bip, bip, bip… o microondas anunciava as horas ecoando uma onda de som eletrônico – passara-se mais uma hora e agora já eram três horas da antemanhã. Peter Harvey reacomodou-se no sofá-cama, endireitou a coluna na tentativa de evitar pensamentos que considerava tolos. Zap, zap, zap! Zapeava, meio que por mania de insone, meio que por angústia. Em cada canal havia algum tipo de referência felina, um som, uma imagem, uma citação. Sensatamente, Harvey chegou à conclusão de que estava cansado e que não mais enganaria o próprio sono. Desenrolou o sofá em cama e deitou-se.

Peter não conseguia dormir.

Indubitavelmente estava intrigado com o gato, mas a razão pela qual não dormia era a peleja diária para adormecer.

Luzes: desligadas. Sons das coisas não vivas: ligados. Ronrom: ainda lá. Peter Harvey: acordado. Peter brigava com o sono como se uma tempestade em formação estivesse em seu rumo, lutou contra seu cobertor até conseguir cobrir-se e proteger-se. Contorceu-se e rolou tanto em agonia na cama que esta rangeu – nhenc! Seus braços se abraçaram ao travesseiro dobrado como se este fosse uma rocha, uma âncora onde ele podia se agarrar. Peter estava acordado. Tic, tic, tic, tic – a torneira pingava ritmadamente. Tac, tac, tac, tac – o chão rangia. O microondas, insistentemente – bip! – anunciava mais uma hora que se passava. Um chilrear a estuprar o silêncio das coisas não vivas e o cômodo a se invadir pelos raios do dia que já se anuncia, e também pelas milhares de formas de sons das mais vibrantes coisas que vivem. Àquela altura, Peter, exaurido, deixou se vencer pelo cansaço e finalmente caiu nos braços de Morfeu. Já era um pouco mais das seis horas e ele tinha pela frente pouco mais de três horas de sono antes de banhar-se, tomar um café, fumar um cigarro e sair para o trabalho. Peter estava petrificado e tinha-se para a cama mais como um cadáver do que como alguém que descansa.

Trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim, trim… tocava o alarme programado para as nove horas e quinze minutos de todos os dias, excetuando-se aos domingos. O alarme tocava – trim, trim, trim, trim – mas Peter não se movia.

O rugido que habita a casa com Peter está agora abafado pelos sons externos da manhã. Confortável, ele acorda, os matizes amarelo-alaranjados do dia atravessam os vidros da janela e se juntam ao aroma de café fresco que toma todo o apartamento. Ele se espreguiça sem abrir os olhos, os braços abertos, amplos em sua envergadura, estão prontos para receber um novo dia. Ele boceja e abre os olhos e lá está um gato escancarando o focinho e caminhando o preguiçoso e elegante caminhar dos gatos sobre todo o cobertor em direção ao seu colo.

Por um instante, Peter estatela-se em assombramento, o gato, mímico de seu assombro, imita-o em congelante comportamento. O gelo só é quebrado quando o gato espertamente resbuna e começa a roçar seu bigode nas mãos de Peter, que seguram o cobertor na tentativa de racionalizar a situação que se manifesta.

Amedrontrado, o homem – desacreditando no que vê – salta da cama num supetão. A pequena mesa de forma ovalada está posta para o café da manhã: pão recém-assado, bolo, muffin, biscoitos, ovos e bacon, manteiga, geleias, café fresco, chá e leite.

De um lado, está sentado o gato lendo o jornal; do outro, uma cadeira aguarda-o. Peter está emudecido.

– Bonjour, monsieur Harvey. Le petit déjeuner est servi, fala o gato num tom bem natural, asseyez vous.

Peter esbugalha os olhos o máximo que pode.

Quel chat stupide que je suis, pourquoi suis-je en train de parler en français avec vous?

Excusez-moi! Oh, novamente! Me desculpe. O que eu quis dizer foi: o café da manhã está servido, sente-se!

Je… je… je vous ai entendu, gagueja. Espere, je ne parle pas français.

Ah, agora você fala! Você é tão esparto, mon ami, o bichano dobra o jornal e se serve de uma xícara de chá.

Você vai ficar parado aí a manhã inteira? Le petit déjeuner est superbe!

Peter Harvey, desconfiadamente, aceita o convite, não por curiosidade, mas pela incapacidade de controlar sua atitude.

“Ma chambre a la forme d’une cage…” o gato começa a cantarolar uma canção em francês.

Peter paralisa-se na cadeira. Desesperadamente tenta gritar, mas de seu verbo só sai francês e então se cala.

Ele tenta se mover, mas seus braços estão amarrados à cadeira, seus olhos estão presos com fita adesiva e seus ouvidos parecem explodir por conta dos sons ensurdecedores do despertador.

Peter Harvey arregalou os olhos, mas não conseguiu se mover. Seu corpo desprovia-se da capacidade do movimento. Ele também não podia respirar e então se engasgou. Quando recuperou o fôlego, saltou da cama como para terminar algo que não poderia esperar e mergulhou num dia que tinha acabado de ser deflorado pelas possibilidades da noite.

 

 (José Pedro de Carvalho Neto nasceu no sertão baiano, mas sempre viveu em cidade portuária. É, com todos os clichês da expressão, cidadão do mundo. Publicitário, estudou escrita criativa na Austrália, onde teve contos, poemas e trechos de um livro que nunca se acabou publicados, além de freelancer de todas as coisas)

 

Clique para imprimir.

4 Comentários

  1. Amei, José Pedro!!!!

  2. Parabens! Uma intrigante mescla de sonho e realidade num ser que luta contra a solidao do cotidiano massacrante.

  3. Parabens, Pedro! Adorei! Nao sabia que voce é mago das palavras!

  4. Lindos lindos! Sou apenas apaixonada por essa sinestesia toda

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *