Dedos de Prosa III

Geraldo Lima

 

Foto: Jussara Almstadter

 

Ela

 

É como se não tivesse ficado tanto tempo longe de casa. Como se não tivesse, num rompante do mais louco romantismo, abandonado tudo em nome do amor mais extremo. Olhando-a assim, tão desenvolta na casa que ela renegou um dia, podemos nos espantar com a sua certeza de que ainda cabe ali, de que não há outra em seu lugar, de que ele não trocou a fechadura exatamente para que ela entrasse sem precisar tocar a campainha. E aí está ela, desfazendo a mala, indagando sobre o comportamento das crianças (nem percebe que cresceram, que praticamente não a reconhecem), e reclama do guarda-roupa bagunçado, reafirmando, talvez, a necessidade de sua presença ali. Ele, até agora, observa tudo pasmo, com um engasgo, uma vontade de dizer algo, uns desaforos, uns desafogos, indagar, se impor, mas sentisse-se atravessado por sentimentos contraditórios: enquanto busca em si o ódio, a faca que trincha, um fiapo de alegria deixa-o mole, aliviado, quase a ponto de chorar. Intenta reagir contra essa fraqueza, porém já é tarde, ela domina o ambiente, preenche o vazio de antes, dando a nítida impressão de que tudo está começando agora, sem pus algum na ferida que lateja ainda exposta.

 

 

***

 

Sinais

 

Douglas levantou cedo, ignorou o café da manhã e se pôs a esperar. Estava convicto: logo, logo aconteceria. Seria como estava profetizado. Assim como lera no livro sagrado. Tudo o que tinha a fazer era esperar. Crer e esperar.

Cerrou os olhos para que os ruídos mais inaudíveis pudessem penetrar-lhe os ouvidos. Era pela audição que toda a verdade lhe seria revelada. Acreditava que, anulando um dos sentidos, no caso a visão, aguçaria o outro.  Não lhe vinha à cabeça a necessidade de um tempo maior para que a ausência de um sentido fizesse o outro aflorar com uma eficácia quase divina.

Os sons que lhe chegavam da rua ou mesmo do interior da casa ou ainda do seu próprio corpo eram bastante comuns. Por mais que tentasse ouvir neles notas dissonantes, carregadas de sentidos místicos ou de sinais não revelados, nada, absolutamente nada, ultrapassava o banal e o cotidiano. A vida, para seu desespero, transcorria opaca e sem mistério.

***

 

 

Ombro

 

Deixou a alça da blusa escorrer pelo ombro, descobrindo-o todo, desnudando-o sem pudor aparente, a pele, a carne, a parte mais visível do ser ali, dada, exposta, latejando. Esse pequeno descuido, esse relaxo quase sem propósito, esse marketing súbito, sem almejar um efeito imediato, ali, em plena avenida, a céu aberto, exposto aos olhos de Deus e do Diabo, dos que se julgam santos e dos que já se renderam a todo tipo de danação, isso, esse gesto sem um cálculo preciso, que veio assim sem esboço, sem script, sem o “Ação! gravando!” de algum diretor invisível, fez com ele desviasse alguns centímetros do trajeto, no que costumamos chamar de “perder o rumo”, “ficar sem norte”, “andar à deriva”, fez com que se alienasse de tudo o mais à sua volta, questão de segundos, milésimos de segundo, uma eternidade na frequência dos desejos e do encanto.

 

 

(Geraldo Lima é professor, escritor, dramaturgo e roteirista. Tem alguns livros publicados, dentre eles “Baque” (contos, LGE Editora), “Tesselário” (minicontos, Selo 3 x 4, Editora Multifoco) e “Trinta gatos e um cão envenenado” (peça de teatro, Ponteio Edições). É colunista do Portal Entretextos. Colabora com o Jornal Opção, em Goiânia, e com o Jornal de Sobradinho. Bloga ainda em Baque)

 

 

 

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