Dedos de Prosa III

Lara Amaral

 

Arte: Julia Debasse

 

Bolo de pelos

 

a língua áspera estala o lodo. de meia em meia hora um novelo sobe à úvula. engulo novamente – o estômago vazio –, vai que amanhã só coma os restos das baratas. a geladeira cheia, mas até alcançá-la abate-me a aeronáutica de cismos voadores. sem contar depois de abrir a porta, o frio desarticulado arma as travas dos lábios. ah, sobreviver no errante estado para-raio. acostuma-se, sabe? não precisa de beleza: eu ponho a mesa baixa pros ratinhos, mastigo o vidro estilhaçado da visão-quebravento a favor do rasgo e enrijeço até o ponto em que estremeça os ócios. próxima, ouça, cavalga a trovoada – não tarda o horizonte romper-me-á em sobremesa.

 

 

 

***

 

 

 

Herança

 

Confiou-me a história pelas rachaduras em minhas mãos. Mãos de anciã que acariciam o mundo às costas como se carregasse um bebê morto rumo ao milagre extinto. É-se sempre um bom tempo para morrer e eu perdi homens em conflito consigo. Choro mais por não ter ido, corroendo a boca pelo excesso de sal e a falta de chuva. No entanto em casa a umidade não para de aumentar e não há reza que acuda os quartos vizinhos transbordando por debaixo da minha porta. Só me restaram cartas de quase-amor de despedida e ainda dizem para eu sorrir pois volta o sol às cinco e quarenta e cinco todo dia. Mas perco o fôlego na cama, deitada, a cada madrugada ao escutar o galo que canta por uma hora seguida, desfalecendo às três da manhã sem nenhuma luz antecipar-se para acudi-lo. Troco toda a esperança traíra pela tempestade que se perdeu na estrada no instante do choque de suas fendas vulcânicas. Seu corpo adormeceu por lá entre magma e faróis que passavam lentos observando o cataclismo, o qual herdei de ti – nessas horas deus devia estar em sua escotilha à prova de som, intocável pela fragilidade humana. Há tanto que só falo comigo mesma porque os monstros têm medo de mim e se escondem mantendo a lâmpada da consciência acesa. Abdico das enganosas cartas, elas que se virem em pipas, origamis, balões de seda. Este ano anuncia a maior seca no meu peito encalhando todos os barcos de papel. Mina em rebanho a areia e o amor que veio imaturo me encontra velha, arrebentada, com os olhos vazados de ampulheta. Perdi a contagem que regressa para me lançarem como âncora. O aceno desde o cerne habituado ao meu adeus.

 

(Larissa Amaral Teixeira usa o pseudônimo de Lara Amaral como assinatura poética. Nasceu em Brasília em 1986. Formada em Jornalismo, escreve poesia desde os 13 anos e arrisca alguns contos de vez em quando)

 

 

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2 Comentários

  1. lindo Lara!!!! me tocou.

  2. Impressionante o conto HERANÇA da Lara Amaral! Bonito, doído, esperante…

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