Dedos de Prosa III

Foto: Bruno Kepper

 

Trancelim

Pedro Costa Reis  

     

Canções. As canções de pequeno. O trancelim dourado no qual me pendurava pelos dedos, deslizando e rodando suavemente pelo pulso da mãe. Real ou não. Às vezes era só trancelim. Quando não, era melhor, com as canções, que passeavam detalhadamente por cada assobio meu quando maior, entre os trabalhos na horta e no curral atrás da casa, com Noite, Lobisomem e os outros bichos, padres de minhas confissões. Se falava dentro da casa, era chibata, por isso penso, mais que falo. E ouço. E guardo essa lembrança dentre as meias e panos do meu quarto. O bater das agulhas da minha mãe à janela. Desta vez eu saio, pra não ouvir mais.

“estes xales e colchas eternos que faço. Motivo que seja, pra esquecer-me das horas. Somos somente três nesse fim de mundo pra onde Aurênio me arrastou, puxou e fincou com mais força do que as folhas que ele planta e arranca todo dia atrás de casa, com aquele menino burro. Arranca e liberta. Menino, não serve nem pra modelo das meias que faço pro pai dele, mas mesmo assim divide e gasta pra eu ter que fazer mais, todo dia. Perdi as contas. Tanto faz, sou mais ele que eu mesma.”

Luarina entoa discretamente uma das canções antigas enquanto tricota. Tensiona as bochechas com força pra não chorar, pois era sexta, e Noite já estava pronto pra levar Aurênio. O canto sai rouco e forçado.

Meu pai sai sem falar com ninguém. Entra em meu quarto, talvez para procurar meias. Relógio invisível de ponteiros iguais com os quais meço o tempo lento. Mãe tece a vida eterna entre sonos ocos da madrugada de sexta, entre a revolta e a resignação, espadas de horas, constantemente a estalar. Meu pai deu a volta na casa, ainda dentro da névoa. Só lembro-me da cidade, longe, de dia, quando novo, depois nunca mais ela precisou de mim. Antes era uma infinidade de pernas, lixo, vozes, gritos, pombos e muitos brinquedos. Pendurava-me nas tábuas e via difícil os bonecos que olhavam assustados ao redor, os cavalos olhando assustados para frente. Brisa quente. Olhava para a mãe de olhar sério e queixo forte, como o do pai. Será que sempre foi assim? Nem dava trela para a curiosidade, e não era doido de falar coisa que fosse. Voltava aos pés levando os sacos verdes fedidos, pesados.

Otávio persegue atento a intervalos de janelas os cascos de Noite névoa afora.

Por um momento esqueço dos sons dos ponteiros da mãe atrás de mim. Esqueço da sua presença, por pouco, sei bem. Mas sem acalanto hoje, deixa ela sozinha dormir em paz o sono vazio de canções. Dá saudade. Dava. Pensa bem, Tavito, olha a chibata ali atrás, é doido é? Medo de tudo, pavor de nada. Antes eu ia mais, de dia, até com meu pai. Agora meus amigos sumiram. Antes era correria. Agora também, mas sem sorriso ou gritaria.

Afasta-se da janela, ouve o distanciamento de Aurênio, cujo som dos cascos possantes de Noite emudece a canção que Luarina discretamente entoa.

O estalar novamente. Ela mal me olha de frente, muito menos na sexta. Se esquece no meio desses panos, as bochechas tesas. Sempre novas linhas no sábado, costurando as semanas em meses e anos. Mas essa sexta eu saio. Sete anos costurado nesse meio de nada. O silêncio é dono deles por aqui, mas hoje não. Vou-me em Lobisomem.

Sai da casa por detrás, pega a sela, a chibata e a rédea tateando pelas paredes e usando do costume apronta Lobisomem velho pra seguir. Luarina cochicha a melodia enquanto ouve Otávio por detrás da casa.

“Devia ter levado algo pra agradar as raparigas filhas da puta de sexta-feira, e agora o menino grande quer putariar também. Só pode, de fora tem tudo do pai, o demente. Meia é não era que foi procurar no quarto do menino. Só quero que volte. Essa música sempre, sempre”

Tricota com mais força, estalando forte as agulhas, uma na outra.

Agora não quero saber o porquê de ela nunca sair com meu pai toda sexta. Que fique. Aqui, as pegadas, mas longe, como vou ver? Luz. Sim, pela luz. Não ouvi sequer o som das cobras debaixo dos cascos do velho Lobisomem, perdi a noção e cheguei aos portais da cidade. Um vazio, e suspeitei que fosse o inferno, só dos gritos ao longe que vinham me receber. Das almas loucas ao longe passando bruxuleavam silhuetas na névoa corrente. Um vazio, e os balcões não estavam lá, na rua que senti nos pés ser a dos dias, antigos. Puxei com força Lobisomem e avancei. Segui a música alta, animada, e vi umas pessoas passando cheirando forte. Uma lâmpada fortíssima cobria de verde os passantes e a entrada do bar era ensurdecedora. Mar de gente se debatendo por dentro. Conhecia aqueles rostos velhos e desconhecia os novos. Havia um balcão úmido à frente, onde as pessoas se penduravam esticando as mãos e gritando um não-sei-o-que-de-mel-limão-tangerina-canela-pimenta-troco, e virei de lado numa entrada sem porta com uns dizeres obscenos em volta. Fui empurrado para dentro, olhei para trás e não vi alma que pudesse culpar. Me viro e de um susto pensei ter visto minha mãe sentada com uma puta no colo. Trancelim em pulso falso. Era meu pai que a sentava no colo, dourada com as memórias de criança. Acordei sem lembranças, caído na esquina do bar, entre gritos e o crocitar das sirenes. “Foge, foge, pirralho!”, um mendigo gritava. Corri tropeçando em poças, com o trancelim vermelho no bolso.

De uma das janelas, enquanto não entrava, ela se levantava de um susto, observou-a cruzar a sala até olhar para trás antes de entrar no quarto. Olhou para trás e foi deitar-se. Estava, ouviu? Mas ele não está dançando. Estava. Vai pro quarto, velha, que ele não volta mais. Cadeira de frente à janela e o xale meio acabado com as agulhas no chão. Foi pro quarto, limpou com os dedos o trancelim. Ela se virou, apertando o xale contra o corpo, a outra apoiada no rosto do menino dentro do quarto, que cheirava a velhice, a brisa gelava o suor debaixo dos lençóis. Não dormiu. De um susto levantou, sob a luz: viu o pai no rosto velho da mãe. Tirou a mão da corrente gasta em pulso seco. Virou a cabeça e o riso demente, desaparecendo à medida que calava o riso, desaparecendo de cabeça até embaixo como se subisse a cabeça primeiro e calava para algo que o suprimia como um desenho de giz sendo apagado da lousa.

(Pedro Costa Reis, nascido em 1987 em Recife, formou suas leituras no interior do estado e quando voltou, em 2003, à capital, iniciou sua produção com pequenos poemas escritos em cadernos escolares. Em 2005, lançou seu primeiro conto em uma revista mineira, e depois o mesmo conto foi para o portal Cronópios, bem como a prosa A borboletas do pai (Meu pai e as borboletas). Entrou na Contologia, organizada pela Cronópios e lançada em 2012, e seu conto Midas fez parte de uma antologia de narrativa fantástica da Fliporto de 2012. Enquanto isso, segue escrevendo)

 

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *