Dedos de Prosa III

Anderson Fonseca

 

Luciana Bignardi

Foto: Luciana Bignardi

 

A Tarde

O Sol descansou a cabeça nos seios da noite rosada. As garças levantaram voo e se tornaram negras no âmago de um círculo intensamente amarelo. Quando o amarelo desbotou-se em laranjas, morangos e violetas, o Mar sussurrou seu nome. As garças lançaram-se do mar de cima ao mar de baixo e limparam o negro de suas penas. No interior do mar de baixo outro céu se abriu e era azul como o mar de cima.  Um cardume desgarrou-se dos dedos do oceano e foi agarrado pelas presas do vento. O vento levou consigo o perfume das águas até desmanchar-se nas cabeleiras de pedra. E a sombra pousou úmida e fria sobre a cabeça do pescador sentado, à beira do mundo, num torrão de areia, e ele, entregando-se à tarde, adormeceu.

 

***

 

 

O Corte

Éramos 30 homens, 15 mulheres e 12 crianças, espremidos num quarto. O general no dia anterior disse que faria um corte. Cada um especulou quem estaria na lista. Citaram-se nomes, números de identificação. Não sabíamos e a expectativa era atormentadora. 24 horas depois que o general nos tinha avisado, a porta se abriu, era bem cedo.  O soldado ordenou a saída apenas das mulheres e dos homens, as crianças ficaram no quarto. Caminhamos até o pátio. O general perguntou a idade de cada um e separou os mais novos dos mais velhos, depois pela data de nascimento a partir do menor número ao maior. De um lado do pátio estavam os homens, do outro as mulheres, divididos entre dois grupos: jovens e idosos. Um soldado aproximou-se do general carregando uma pequena caixa, dentro dela estavam as datas de nascimento de cada um de nós. A mão entrou na caixa e retirou um papel e, em seguida, a voz metálica disse:

– 14.05.56. Dê um passo à frente.

Novamente a mão entrou na caixa.

– 20.09.89. Um passo à frente.

As datas foram: 31.06.75, 20.07.93. 04.08.86, 03.05.94, 12.01.68 e 23.10.80.

Dois soldados puseram-se no meio dos convocados, eram quatro de cada lado.

O general disse: – Hoje vocês receberão o privilégio da compaixão do Estado. Não sofrerão mais. Serão libertados. Abaixem suas cabeças e recebam da Lei e da Justiça o perdão. Vocês serão cortados da lista de culpados.

O 03 abaixou a cabeça, depois o 04, 12, 14, 20, 23 e 31. Passou-se meio minuto e os dois soldados iniciaram o rito do perdão. Os que sobraram voltaram para o quarto à espera de um novo corte.

 

Anderson Fonseca nasceu em 1981, no Rio de Janeiro (RJ). Professor e crítico literário, é também um dos editores da revista de contos Flaubert. Publicou Notas de Pensamentos Incomuns (contos, 2011) e Sr. Bergier & Outras Histórias (contos, 2013). Organizou a antologia Veredas – Panorama do conto contemporâneo brasileiro (2013). Vive atualmente na cidade de Brejo Santo (CE).

 

 

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