Dedos de Prosa III

Caio Russo

 

Tomás Casares

Foto: Tomás Casares

 

Cinzas

 

Para Pedro, que das baforadas de seu cachimbo tantas vezes aqueceu minha enregelada existência

 

Deixei-me deitar na irregular sarjeta dos muitos pés. Deleitava-me dissipar vagarosamente no delicado ar citadino. Punha-me a devanear sobre os incontáveis dedos que me pus a passar. Incontáveis delgados e cilíndricos enleados pelas mãos de tantos e tantos formatos. Tessituras, marcas e cicatrizes. Eu que estive em tantos e tão diversos lugares, a auscultar o mundo. A provar buquês de timbres tão variegados na boca impregnados. Caminhei nas mãos da jovem. Soerguia-me como troféu pueril. Empertigava-se toda. Esticava as costas. Balançava os cabelos e punha-se a desenhar arabescos no espaço tendo-me por pincel — Não sabia que você fumava, Luciana … Não? Comecei faz pouco tempo, gosto do cheiro desde criança, mas não tinha idade, e tem meus pais também, sabe como é… Em seus lábios punha-me fazendo bico. Tragava-me enojada pelo gosto. Soltava-me pelas narinas maravilhada com as formas que a parte de mim transubstanciada em seus pulmões tomava. Olhava ao redor na expectativa de me apresentar para um amigo, ou despertar a curiosidade de um andarilho qualquer. Evolava teto acima em cinzas graduados, densos e assimétricos. Ali ficava eu a pairar nas lembranças. A preencher os sulcos da face envelhecida. Companheiro inestimável nas noites de solidão. Dedos experientes a me afagar em seus secos lábios. Era-me também parte de si. Um dedo. Dedo de se fumar — Onde minha velha há de estar? Foi e me deixou aqui. Penso que deveria era ter dado um sopapo naquele padreco: até que a morte os separe o quê, deixa disso. Não está essa minha velha chata a ralhar em todos os cômodos mesmo depois de morta? Seu cheiro não está por toda parte? Ora essa, há mais dela aqui estando morta do que eu aqui, vivo estando. Pousado ficava no cinzeiro outrora de ambos. Ali acolhido crispava. Chamuscava no algodão. Dava-lhe relevo. Argamassa em tela, levemente ia passando. Marcando. Escurecendo — Não mãe, por favor, foi sem querer. Para mãe, para, por favor, para, não faz isso pelo amor de deus, dói muito. E lá ia eu vincando, marcando, abrindo caminho em braço alheio. Creio que nesses lábios não tocarei. Não hei de ser tragado, a não ser em seu corpo.

 

 

 

***

 

 

Campinas

 

Beatriz: viva por uma cidade inteira

 

Acordou cedo sem nem bem ter dormido. Prolongava a noite no arroxeado de suas pálpebras carregadas. Lavou o rosto com a pressa de quem pouco tem a fazer e por isso adianta-se à espera do compromisso que não vem. Ouvia ele na escada os passos da novidade. Parecia poder tocá-la por detrás da porta. Não era nada. Ele só morava em Campinas. Lugar difícil. Metrópole que guarda nostalgia do interior solapado sob o acre cheiro de urina da praça da matriz. Ainda pior. Cidade rápida quanto mais parada é. Desprovida de estrelas para se observar. Campina que se suicidou em asfalto escaldante. Escapamento sufocante. Íris lacrimejante da manhã ainda a desabrochar. Lépido, jogou o casaco em seu corpo esguio. Nem bem escovara os dentes. Sabia que tinha todo tempo. Entretanto, o fluxo das ruas atulhadas de gente desprovida de gente falava-lhe o contrário. Seguiu os passos de um rapaz. Entrou inopinadamente no velório. Não conhecia o defunto. Nem aquelas pessoas iguais, todas de preto por respeito. Curioso, olhou de esguelha. Despreocupadamente, observou o produto daquela embalagem de madeira. Um velho. Acho que já passado do prazo de validade. Bigodes curtos. Acinzentados tal qual a rala cabeleira. Fios espalhados na morena cabeça. Nariz mal entalhado. Lasca de toco cortado sem cuidado. Grossas mãos inchadas da enxada soada em grama seca. Queria fugir aquele terno do peito do homem. Creio que se fosse dado como à Sansão um último fôlego ao senhor imóvel, teria ele rasgado aquela pompa ao meio. Colocado para correr aquelas lombrigas que jamais tomaram leite de vaca. Só da caixa. Todos esses parentes estranhos. Próximos distantes. Ecos de seu sangue repisado. Teria ele chamado as galinhas. Porcos. Cavalos. Vacas. Insetos variegados. Tão mais gente que essa gente. Desinteressados. Tristes por não mais compartilharem o silêncio desse matuto. Nada de herança. Fazenda. Divisão de bens enquanto o presunto ainda nem endureceu. Queimaria as rosas do caixão com seu cigarro de palha. Enchê-lo-ia de capim molhado de sereno. Sem ter o que fazer, seguiu Azazel no tédio alarmante da eternidade sem lembrança. Pensava ele: — Mataram a morte.

Caio Russo estuda História na Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Assis. Atualmente pesquisa História da Arte e Estética, com enfoque em Nova Música do Século XX e o conceito de Feio na Teoria Estética de Theodor W. Adorno. Dedica-se à prosa, com predileção pelo conto. Escafandrista de nascença, põe-se a relatar sobre os microscópicos animais, objetos e resíduos, que decantam do fundo do lago, a pairar no vidro do capacete um instante antes de nunca mais serem vistos nas turvas águas dos dias. Escreve para não afogar-se em si mesmo.

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