Dedos de Prosa III

Lia Beltrão

 

Foto: Pedro Alles

Foto: Pedro Alles

A coisa

Em algum lugar uma coisa se esconde esperando minha mão. Um dia, o acaso me levará para um canto sombrio da casa, onde uma caixa de sapato ou a gaveta de uma antiga cômoda guarda a coisa que me espera. Vago pelas sombras da casa e minha pele eriçada me avisa da proximidade da coisa. Então me afasto até que a pele sossegue e me permita caminhar sem sobressaltos. Mas o caminho oposto também me leva a sombras e novamente sinto o arrepio. A coisa é móvel. Pisca para mim de sombra em sombra. Não sei o que quer de mim nem o que tem para me dar. Sei que me atrai e me repulsa. E é grande o medo que tenho de encontrá-la.

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Covardia

A única vez que ele mentiu pra mim foi quando disse que não me amava. Amava, sim. Do jeito que amam os covardes. Amava a casa arrumada, a roupa limpa, bem passada, o cheiro dos lençóis. Amava a comida de todos os dias e amava mais o almoço dos domingos. Mas dizer que me amava, nunca disse. Também nunca me chamou de meu amor. Nem mesmo antes ou depois do gozo, muito menos nos meus tempos de agonia. Quem visse de fora, podia pensar que era dureza de macho. Mas eu sabia que era pura covardia. Porque se dissesse que me amava, eu podia querer mais coisas dele. Que se casasse comigo, que me desse filhos, que me pagasse as contas. Mas eu nunca dei esse gosto a ele. Sempre tive meu dinheiro. Costuro pra fora, faço bolos, vendo avon. Ele é que um dia chegou mais calado do que de costume. Tomou banho, jantou, ligou a televisão e ficou ali, um mortovivo. Quando perguntei o que se passava, disse com voz de choro: preciso de dinheiro pra pagar uma dívida de jogo. Era pouco, eu tinha, entreguei a ele dentro de um envelope. Ele pegou o dinheiro, levantou-se do sofá e disse que ia embora e não voltava mais. Eu não te amo, disse. E eu vi nos seus olhos e ouvi na sua voz que ele mentia.

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Pés

Por muito tempo, meus pés serviram para caminhar. Levar-me pra lá e pra cá, pisar na lama, torrar nas pedras quentes do meio-dia. Sempre tive muitas cócegas nos pés. Você descobriu por acaso e passou a me torturar com os dedos leves. Depois vieram os beijos e depois a língua. Aos poucos, meus pés não queriam mais caminhar. Desejavam a boca que os tinham desviado dos antigos caminhos. Hoje, meu corpo começa pelos pés.

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O estranho que me visita

Eu sei quando ele chega. Gosta de me pegar distraída dentro de um livro, aparando as unhas ou bordando com meus bastidores. Quando me dou conta, ele já sumiu lá para os fundos do corredor. Nas primeiras vezes, tremia de medo e me distraía ligando a tv, cantando alto, telefonando para qualquer pessoa. Até que ele sumisse.

Mas teve um dia em que criei coragem e fui caçá-lo pela casa. Entrei no quarto, ele deu sinal de estar no banheiro. Abri de um brusco a porta do banheiro, ele mexeu na torneira da cozinha. Acendi a luz da cozinha, ouvi o seu suspiro lá na sala.

Com o tempo, aprendi que ele não queria ser visto. Me acostumei com a sua presença pela casa. Quando ele chega, finjo que não percebo. Continuo presa no livro, na serrinha de unhas ou na agulha que passa de um lado a outro do tecido esticado nos bastidores. Faço falsas poses distraídas, sabendo que ele gosta de me ver assim, vivendo a vida, passando o tempo, pensando coisas. Gosto desse estranho que me quer assim, na mais banal intimidade. Gosto que vasculhe minha casa, que me vasculhe por fora e por dentro. Gosto que me mostre a estrangeira que eu sou dentro do meu próprio território.

 

 

Já fui do lar. Hoje faço doces para lares alheios. Faço textos, também. Mas não os envio aos lares. Prefiro que andem pelas ruas e encontrem ao acaso quem os leia. Entreguei vinte e três anos de minha vida a um homem, uma casa e uma filha. Só depois que o homem se foi e a filha se casou, pude ler o que quis, escrever o que quero. E algumas pessoas gostam do que escrevo. Por isso, sou teimosa e vou aos poucos construindo um olhar novo sobre as coisas do mundo. Às vezes dói, mas sempre me dá prazer. Tive alguns textos publicados em Dedo de moça – uma antologia das escritoras suicidas (São Paulo: Terracota Editora, 2009). Já é um bom começo.

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1 comentário

  1. Pequenos contos que não precisam mesmo de mais palavras porque falam do essencial de cada sentimento. Muito bons.
    Maria Lindgren

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