Dedos de Prosa III

 Tere Tavares

 

Alessandra Bufe Baruque

Arte: Alessandra Bufe Baruque

 

O colorista

 

De costas à insígnia do dever – em sua paixão havia também compaixão – eliminou o íngreme degrau. Na produção dos últimos meses colocara o prazer acima de outros princípios.

Jamais se curvaria com vergonha do que fizera. Muitos em seu lugar teriam optado pelo contemporâneo insosso e suspeito. O que é arte afinal? Repugnava-o sentir-se obrigado a admirar estilos desagradáveis. Era consciencioso – nenhum pecado até esse ponto.

Longe de representar a totalidade do que é nobre ou bom, relutando entre egoísmo e amor, por mais abjeto que lhe parecesse, seguiu somente o que sentia. O cinismo arruinado pela pouca idade também não foi impeditivo ao mais raro atributo de qualquer homem: o bom senso, a coragem de não ultrajar o que realmente é para si mesmo.

O marchand decepcionou-se. Os críticos o ignoraram. Perguntou-se como pudera ser tão inquestionável em sua agonia emocional. Ali acontecera um crime, cujo corpo desaparecera sem rastros.

Frente ao inevitável não há delírios. Voltou para casa com os pacotes pesando-lhe nos braços. Guardou tudo numa caixa e foi para o sótão.  Com a luz indecisa contrariando-o, redescobriu as brumas das imagens. Ultrapassou o triângulo.

No reverso do espelho um rosto antigo lembrava-lhe a irmã e a desordem. A Terra ainda era o planeta que lhe circundava a visão. A Lua continuava ali perfumando os lençóis.

Aprimorou a forma de confrontar o próximo inimigo. Com sua urgência fremente, continuaria a fazer justiça ao arco-íris com a fidelidade das próprias mãos – Wabi-sabi.  Sem reparos envelhecidos. Sem sustos. Sem mortes dessa vez.

 

 

***

 

 

Sub-reptício

 

Notas de um dia de outono que despertou ainda entregue ao sono porque a vida também é um filho, a mudez dos sargaços, o iphone, a mulher, o indivíduo, utopias de outrora –  o ar não pesava quando perfumava a maresia e a profundeza das fontes, nas imagens cruas entregues ao pó, sono e respiração descansadas sobre a estação,  para o que havia de desperto, a engrenagem na concha da consciência, singela vigília de avenida no botão do esplendor solar, a sério por outro lado a voz do corpo e a consciência, salut d’amour, num complexo retalhado de penumbra. Estou aqui, pormenor, não continue a evadir entre velar e adormecer abraços.

Que sim. Respondeu-lhe.

Destinos sem vocação, nossos fantoches em praias filosofais, nós, iludidos de não sermos… dilúvio de ilusões, rosas de um rumo lento e voluptuoso.

Sobrava-lhe o olhar de Gioconda, chuvas confusas que prometiam sentidos inesquecíveis, caminhos talhados na estranheza das poças deslizando sobre a alma em seixos ressequidos. “Não imagines oh velha juventude onde hoje caiu-te o senso das tantas que és”.

O disparate estalou a tempestade que coube em si.

Confissão refém da certeza, além daquilo que faria derramar as águas num lugar qualquer, um frasco amargoso de mel, o sonho triunfante em menos um alvor – não o danifique, decifra bem o humor das seivas e dos líquidos – perdia-se no agravo discreto, nítido.

Que não. Retornou-lhe.

Quando coubermos úmidos entre dois instantes de respirações espumantes – entre o enlevo do encontro e a hirteza rutilante da busca por outra realidade sem pausa – somos o que aqui vagueia, só Lua e Sol.

 

Tere Tavares, escritora e artista plástica, autora de quatro livros publicados “Flor Essência” ( poesia 2004), “Meus Outros”  (poesia e prosa 2007),  “Entre as Águas” (prosas 2011) e  “A linguagem dos Pássaros” (poesia Editora Patuá, 2014). Integra a Academia Cascavelense de Letras.

 

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