Dedos de Prosa III

João Bosco

 

Foto: Ana Pérola

 

O Baptizado

 

O dia está abrasador e eu não aguento tanta presença entre garrafas de água. A ressaca dói-me como uma primeira vez, apesar de já não ser novidade. É o baptizado do último primo que não sei se o será e eu sinto-me como se caminhasse por entre um sonho onde mal dou por quem passo. Cada parente pesa-me como um membro edemaciado, pendurado pelos nervos directamente no meu cérebro, hoje de gelatina. Tenho que sair deste lugar tão familiar na pedra e no sangue, com agulhas quando me olham e eu sem conseguir compor-me no fato descosido que hoje sou. Tenho que sair daqui e encontrar-me comigo em algum lado onde hajam só olhos para dentro, até me passar esta náusea nada metafísica e reaprender a caminhar de outra forma e não desta em câmara lenta, pensando cada passo para parecer natural e dando cabo de todo o teatro de improviso.

Tenho que me manter eu. Tenho que me manter o eu a que estes estão habituados. Não posso deixar que estes saltos de consciência se manifestem no que sou para o mundo. É festa, a gente está para festejar e não para serem contagiados pelo meu funeral de neurónios. Funeral, baptizado… e eu a ter que aguentar isto tudo, só por causa da religião destes, depois de uma noite herege deste. Se soubessem que as religiões surgem de esquizofrénicos que foram levados demasiado a sério por multidões…

Não sei o que o futuro me reserva, mas talvez um barco, não dos que descobriram a Índia cheia de indianos, mas dos que levam a glande ao colo do útero de uma sueca qualquer, já riscada no mapa por um filho de chileno. Os do novo mundo antecipam-se, mas de vinho… E a irmã ao lado adormecida por um fingimento também ruivo, acordada por uns dedos que desaparecem no vácuo de tanta espera líquida. Só me espalharei numa delas, mesmo dentro de ambas até elas todas ruivas no fim. Não haverá beijos porque o vinho chileno não quer e nada mais será que uma memória de um futuro no passado recordado onde fiquei e estou. Nunca saberei a marca do vinho chileno, mas também depois do orgasmo já não vale a pena.

Pode ser que a distância que me está reservada a percorrer no espaço, chamar-lhe tempo se for mais fácil assim, seja só a que vai desta casa do povo, desta aldeia pequena, até ao lameiro do meu avô onde se ouve o sino da igreja, mas não se vê sinal de telhados laranja ou casas brancas com os palheiros castanhos a assinar a ruralidade que persiste. Pode ser que o tempo todo que tenho ainda que soprar, como vidro quente, no caminho, ou debaixo das macieiras, ou o tempo todo que esse tempo todo será, até o prolongar.

Toda a gente me conhece no baixo da casa do povo menos eu. Os braços são-me mais estranhos que aquele sapato de salto alto pendurado no pé de pernas depiladas para a festa. Mal consigo abrir a décima garrafa de água. A sede que tenho nem parece ser minha, por mais que eu beba, não se vai embora. Devo estar a beber com o corpo errado. Os meus tios insistem em cerveja e eu a fingir-me de doente ou santo. Seria o melhor remédio, mas a noite será de festa outra vez e queria guardar-me para depois do casamento. Ninguém me conhece de verdade, no baixo da casa do povo.

Feliz Natal.

Direi na manhã que me espera, na ilha em marte, longe de ontem, longe de hoje, daqui a umas horas se o tempo me levar sem o peso do corpo. Feliz Natal e um ano novo que não se vê a chegar nunca, passa e fico igual, só o número muda, só a ideia a esperança ridícula que seja melhor que o último, só porque é novo… pois ontem estava melhor: bêbedo, pouco eu, mais nos outros, sem uma caneta espetada no cérebro para escrever o que se passou, para o amanhã ser a continuação falsa do que acaba sempre…

Não sei onde estive ontem à noite. Acordei em mim e só, nada a reclamar. Foi festa na terra e acabou mais tarde que o seu fim, para isso servem os amigos e os bêbados. Sei que houve, quando a cor do céu se torna púrpura, uma grade de cervejas quentes no meio do jardim de paralelos com a música a desafiar os guardas que nem se interessavam de males menores. Sei que falei pela primeira vez, sem ter sido eu a falar, com alguém que conhecia há muitos anos. Dizem-me que às vezes tímido, digo que às vezes com pouca vontade para o que não vale a pena e pouco dura. A mim nem me quero conhecer apesar de andar sempre a queixar-me. Sei que houve abraços sem dúvidas, num estado duvidoso, por razões sem existência, apenas porque havia aquele momento e uma força maior que o nosso pé atrás a empurrar-nos na direcção do que sentíamos, fosse quase nada, fosse uma euforia irracional só por se estar ali no centro do jardim de paralelos, com uma garrafa de cerveja quente, a ouvir música sem se dar por ela depois do dia da tão esperada festa. Sei que esticamos a noite até se romper com o dia e que tentamos desacelerar o tempo com golos apressados, só não sei onde estive ontem à noite. Hoje, que deve ser onde… que deve ser quando estou, não sei quem foi aquele gajo, mas invejo-o, porque hoje ainda há luz e ando a água.

Ainda longe dos paralelos da cerveja quente, estive com os dedos dentro de um candeeiro no passeio, encostado a uma loira acesa, sem qualquer pudor, ou sem consciência para isso, só a vontade. Encostei-me contra a porta descascada da casa antiga, hoje velha, dos senhores ricos em decadência bebendo loiras, confundindo a sólida com a líquida, fazendo com que a sólida líquida e a líquida em pouco tempo a jorrar do sólido. Tudo acabou antes do fim porque no meio da rua da terra pequena não é lugar para se dar liberdade à vontade, mais vale esperar uns dias até a casa estar vazia e uma desculpa estar cheia e infalível, uma cama para desfazer e a ansiedade de ter tudo planeado e previsto quando nada sai como previsto por causa da ansiedade. Trapalhada de lençóis e pregas de pele que se colam ao corpo como sanguessugas de orgasmos, chupando, chupando e o sangue a vir de longe de nós, de um lugar onde não sabíamos existir.

Treme-me o cérebro e sinto-o nos movimentos descoordenados dos braços a levar-me água aos lábios secos, de escamas a saltar no sal dos peixes afogados. A vida passa como uma sucessão lenta de imagens, como se o condutor do tempo estivesse a aprender a conduzir entre travagens bruscas e um acelerador de ejaculações precoces. Devo parecer uma marioneta e este lugar cheio de gente que julga conhecer-me a tomar conhecimento da minha condição, tropeçando nos fios que me controlam, provocando-me espasmos inesperados. Não tarda passa-me do corpo ao que sou realmente e salto anos em segundos sem sair do mesmo espaço, louco por dentro, que são os mais comuns e menos reconhecidos.

Savonlinna, 2010

 

João Bosco da Silva nasceu em Bragança (1985). Estudou no Porto. Vive e trabalha em Turku, na Finlândia.  Publicou os livros Os Poemas de Ninguém (2009), Disse-me António Montes (2010), Bater Palmas E Sete Palmos De Terra Nos Olhos (2011), Saber Esperar Pelo Vazio (2012),  Destilações(2014) e Trepanação de Jerónimo Bosch (2015).

 

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