Dedos de Prosa III

Roberto Dutra Jr

 

Valéria Simões

Foto: Valéria Simões

 

REI MIDAS [micronólogo]

 

Midas entra. Cambaleia e atira-se de joelhos, voltado para o público.

– Hoje cravei em meu peito uma cruz de metal. Faz frio na ferida e o metal oxida com o contato do sangue. Das muitas coisas que me lembro da vida, agora todas passando, eis aqui, fincada no mais fundo de mim, essa cruz de metal que cala meu peito. Essa cruz de metal cortando ao meio o fluxo vital de afeto e esperança para todo o resto do meu corpo. A cruz me impede de morrer, a cruz me impede de viver.

Eu vi o inferno. Não busque o inferno no subsolo. Não perturbe com sua bizarra curiosidade as marmotas, os vermes e os soturnos habitantes das sombras. Essa busca infrutífera de alquimistas e de líderes religiosos de sexualidade duvidável e vã. Essa busca tem sido vã pelo curso dos últimos séculos e levado tolos e sábios para arder em fogueiras martirizantes. O martírio de saber pode muito bem ser o martírio de ter que esconder, mentir, ignorar. Infernos inúteis!

Hoje cravei uma cruz no inferno! Aqui, bem no meio. Na base da carne nascem rosas rubras. Os espinhos das rosas do inferno não surgem dos caules, nascem de meus dedos, transformando minhas mãos em instrumentos de dor e solidão. Tudo que eu toco se transforma em sofrimento.

Um dia eu ainda me coço.

Fim.

***

 

 

 

O REMETENTE

Havia um homem que escrevia cartas sem nunca tê-las respondidas.

Em um passeio pelo cemitério, viu seu nome escrito e todas as cartas que remetera.

***

 

 

 

TENTÁCULOS

para Victor Giudice, que ainda observa do outro lado da porta

Nada impede uma manhã preguiçosa nessa cidade. Chegando serena com chuva tranquila. Daquelas que precipitam depois da temperatura gentilmente baixar grau a grau. Os primeiros pingos, pingo, pingos, pingo, ping, ping, pin… Até pensou que ouvisse as primeiras notas do piano de Tom naquela música. Mas, é outubro, e ao contrário das Águas De Março, o céu cinzento e a constância da chuva ensaiam outras promessas nos corações de todos.

Em algum conjunto de apartamentos, em algum subúrbio próximo, ele passa um café no coador de pano. Em algum conjunto de apartamentos em algum subúrbio próximo, alguém mais faz exatamente a mesma coisa que ele, na mesma sequência. Um conjunto habitacional suburbano é um conjunto de outros mesmos.

Ele ainda dorme, mas não sabe. Sempre repete isso mentalmente naquela mesma hora pela manhã. Pensa sonhar com o cheiro do café tomando a cozinha e invadindo o quarto. Ele senta-se sozinho à mesa e serve sua primeira dose. Ela gosta pingado, e o leite fumega sobre o forno, já fervido. Na mesa uma broa de milho fatiada e queijo branco. Toalha de algodão com motivos florais, daquelas que em qualquer armarinho se encontra. O tempo nublado deixa a cozinha escura demais àquela hora da manhã. O sol parecia atrasado.

— Até o sol pode chegar atrasado quando quer – balbuciou.

Ocorreu-lhe que ela já devia estar no banheiro, apesar do silêncio. Incrível o silêncio de uma manhã chuvosa, pensou. Não fosse pelo ruído da chuva, ele nem diria que realmente está no bairro. A cozinha parecia isolada do resto do mundo, já que as demais cozinhas do prédio existiam longínquas pelo silêncio. Todos poderiam ter desaparecido ou estar mortos. Calafrio. Foi até o basculante da cozinha e gritou:

— Olaaaá!

Nem um ruído. O silêncio induzia o pé ante pé para andar. Voltou-se para o armário sob a pia. Precisava de uma jarra para colocar o leite na mesa. Seria um toque especial. Começou a remexer o armário. Súbito uma rajada de vento bate a porta da cozinha. Ele, que estava inclinado para dentro do armário, move-se para fora, e a coluna fica retesada. Pura reação instintual, mas que sempre provoca uma gélida injeção de adrenalina. Voltou-se para o fogão, colocou o leite na jarra e aguardou sentado na mesa. Ouvia o registro do chuveiro ser aberto e a água descer intensa. Parece que hoje ela decidiu começar o dia com um banho, pra variar.

— Que mudança! — falou alto, tentando entabular uma conversa matinal.

— Me admira justo você começar um dia frio como hoje com um banho. Já preparei tudo aqui e estou apenas lhe aguardando. Ainda tinha queijo na geladeira e esquentei o bolo que sua irmã fez ontem. Tudo quentinho.

Ouviu um ruído de escorregão molhado, a luz piscou. Sem sobressalto, gritou:

— Opa! Tudo bem aí, moça?

Sem resposta. Silêncio quer dizer tudo bem e pronto.

— Liga não, outro dia eu também quase levei um tombo debaixo desse chuveiro. Preciso fazer uma faxina e tirar o limo desse banheiro. Vou comprar um alambrado de madeira pra colocar no chão assim que puder. Melhor que esses tapetes antiderrapantes que estragam logo. Olha, se você demorar muito eu vou comer o bolo sozinho. O café que acabei de passar ficou até fraco, do jeito que você prefere. Ah! eu não entendi porra nenhuma daquele filme que assistimos ontem.

Ela demorou. Foi o suficiente pra depois do copo de café o braço sustentar a cabeça sonolenta num cochilo. Acordou e a ouviu fechar a água no banheiro. O leite estava menos que morno agora. Ele voltou-se para acender o fogão. Uma batida estranha na porta, ainda fechada. Parecia que ela jogava o ombro na porta, em vez de bater com a mão. De novo, e de novo, e de novo mais forte.

Deixou o bule de leite e atravessou a cozinha. Abriu a porta e o vácuo do espaço tomou conta da cozinha. Do outro lado da soleira as estrelas e o vazio infinito, deste lado a labareda no fogão se mexia com um vento sobrenatural. De relance ele ainda segurou a maçaneta do lado oposto pensando em novamente fechar a porta. Sua mão congelou na maçaneta e apesar da dor, não sentia mais seus dedos. Com seu último esforço, revirando os olhos de terror, gritou a plenos pulmões, o que ele ouviu apenas na sua mente:

— R’lyeh!

Em uma explosão de movimento do outro lado da porta saltam tentáculos que prendem-se fortemente ao seu corpo. Segurou-se à passagem com o desespero dos condenados enquanto os tentáculos esmagavam seu peito e apertavam cada uma das pernas. Um último tentáculo enroscou-se no seu rosto. Sua última resistência, os ossos dos braços partiram-se como varas e sumiu no vácuo.

A porta se fecha. A investida termina, quase tão súbita como começou. De novo a chuva tranquila bate no basculante da cozinha de algum conjunto de apartamentos em algum subúrbio próximo. Silêncio completo novamente.

Ela abre a porta, enrolada na toalha e arrepiada de frio.

— Mas que droga! Putaquiopariu! O chuveiro queimou, quase entrei em choque com a água gelada! Isso sempre acontece na minha vez, já não aguento mais! Onde você está? Esqueceu o leite no fogo?

Demorou alguns minutos e então, sentiu algo estranho no ar. Olhou em volta da silenciosa cozinha. Arrepiou-se de novo quando uma rajada de vento bateu a porta atrás dela, e sem mover um músculo assistiu o leite ferver e inundar o fogão com uma espuma branca e com cheiro enjoado.

 

 

 

 

***

 

 

 

IDEA FIXA

Entra o fetichista:

– Mãos ao salto!

***

 

 

 

DOMINGO

Bom dia.

Abri os olhos, ela estava lá. Café passado na hora, cigarros, janela. Posso dizer que o começo do domingo é sempre uma rotina. Pego minha câmera e aponto em todas as direções: das copas das árvores ao meu dedão do pé. Devagar o mundo desperta. Vejo nascer o sol e ela levantar-se, preguiçosa. Vai sozinha à cozinha e serve-se de meu café mentolado.

– Você é esquisito. Sempre levanta primeiro? E como conseguiu todas aquelas flores no meio da noite?

Não respondo, claro. Sei que um sorrisinho cínico nessas ocasiões é fulminante. Ela coloca a xícara na frente do rosto e diz entre os dentes:

– Você vai ficar sem roupas a manhã toda?

Continuo calado e com o risinho cínico. Apago o cigarro e tiro sua foto, vestido branco – praticamente um pijama – ela gargalha:       – Não! Estou com olheiras!

Não largo a câmera e começo a segui-la pelo apartamento e aos berros recito Vinícius:

– Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Não demorou muito a perseguição e ela começou a olhar para as lentes. Agora era ela quem observava. Eriçava os cabelos acima da cabeça e logo era ela quem me encurralava. De repente, o fotógrafo era quem obedecia, sem saída. Jogou os braços para cima, fez caretas, abaixou-se e levantou-se, cobriu o rosto e descobriu o rosto. Então ela para e, olhando na lente como se nada mais restasse a fazer naquela entrega, levantou a saia.

– Teus pelos leves são relva boa…

– Fresca e macia.

– Meu Deus, eu quero a mulher que passa! – disse a todo pulmão.

E fotografei a manhã toda, aquele segundo sol a nascer na minha sala.

Roberto Dutra Jr é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Cultiva um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Tem um livro de poemas publicado e mergulhado no esquecimento, assim como seus artigos críticos. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro, entre eles o Panorama da palavra.  Atualmente divide-se entre sua coluna semanal no blog zonadapalavra, eventualmente resenhando para a revista Mallarmargens, e integra o quadro funcional da Editora Ibis Libris.

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2 Comentários

  1. Me envolvi nesta prosa, muito linda!

  2. o elogio da leitora é meu compromisso para escrever melhor. grato.

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