Dedos de Prosa III

 

Pintura: Sylvana Lobo

 

 

CINCO ESTRELAS

Frederico Latrão

 

Com a disciplina de um artesão, levantou junto ao sol e preparou o café da maneira mais tradicional possível: água quente no bule, mas não fervida, e jogada diretamente nos grãos torrados e recém-moídos colocados em filtro de pano. Logo a cozinha e a casa se preencheram do mais intenso perfume. Com uma xícara fumegante em uma bandeja, voltou ao seu quarto pisando devagar, desviando dos calçados e das roupas jogadas no chão durante a madrugada. Ela, em meio aos lençóis revoltos e ainda com os pensamentos amarrotados, se senta na cama, olha para a cena e toma a xícara tímida, retirando os cabelos do rosto e segurando as lágrimas pela emoção de estar sendo tratada como nunca havia sido antes.

Ela odeia café.

***

DEMISSÃO

As coisas pessoais que guardava em seu antigo escritório estavam todas dispostas em apenas uma caixa. Não queria levar muita coisa dali. Nada de lembranças. Elas, para ele, são meras bagagens esquecidas por aqueles que passaram pela sua administração. Também nada de levar os troféus ganhos pelos bons serviços prestados. Eles ficarão dispostos nas prateleiras para que sirvam de recado para aquele que chegará em seu lugar, um aviso singelo de que terá muito trabalho pela frente. Assim, pegou sua pequena caixa e saiu. Ao abrir a porta, viu todos os antigos subalternos dispostos em um corredor, batendo palmas. Muitas palmas. Mal se escutava a sua voz dizendo obrigado. Muitos choravam de emoção. Já o ex-chefe, seguia agradecendo e sem nem ao menos mudar a expressão.

Ao sair de vez do inferno, todos os demônios se perguntavam quem ocuparia o lugar de Lúcifer. Os rumores dizem que o posto será de um demônio muito mais novo e com um currículo invejável, mas que fará o mesmo trabalho ganhando bem menos.

(Frederico Latrão é escritor, poeta, haicaísta e uma doce fraude, pois é o eu-lírico sem rosto do jornalista Gilberto Porcidonio no blog Versos Patéticos e no twitter @FredericoLatrao. A alcunha pomposa lhe veio em um sonho durante um retiro espiritual e após o uso exacerbado de substâncias com alto teor cafeínico)

 

 

 

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2 Comentários

  1. Sim, eu odeio café e se soubesse que havia uma câmera escondida, teria retirado a remela dos olhos. Porra, Puppet! Do carai…

  2. Gostei. Impregnados de ternura e humor sarcástico.

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