Dedos de Prosa III

Claudio Parreira

 

deborahdornellasi

Desenho: Deborah Dornellas

 

RACIONAMENTO

Estão racionando as minhas palavras.

Sim, Eles estão.

Tenho notado isso; a minha fala está cada vez mais pobre. A minha escrita também.

E isso não me surpreende: diante das circunstâncias, acho até natural.

Eu vejo TV, leio jornal, acesso as redes. Só não percebe quem não quer.

Eu não queria perceber; não era meu interesse entrar em conflito com Eles. Não é.

Tanto que só gritei quando a primeira palavra me foi subtraída. Um grito rouco, doloroso. Mas foi só. Não quero problemas.

Não sei como será amanhã — porque Eles estão em toda parte. Agora ainda mais.

Estas palavras, portanto, são importantes.

Podem ser as últimas.

***

 

 

 

TEORIA NA PRÁTICA

A coisa toda é bem simples: primeiro o pé direito, depois o esquerdo, um degrau, outro, e assim sucessivamente. Um piscar de olhos e pronto: alto da escada.

Bem simples — mas não pra mim. Faz dez anos que estou diante dessa escada e não consigo subir. Sei a teoria, mas a prática, ó, nem pensar.

Muita gente veio aqui me visitar: cientistas, engenheiros, vagabundos, todos eles me ensinando como é fácil atingir o alto da escada. Fui educado com todos, agradeci pela generosidade — mas sempre sinto vontade de mandá-los todos à merda: o que acham de mim? Que eu sou um idiota? Não, não, conheço a teoria melhor que todos eles. Só não me entendo direito é com a prática.

Dez anos. Onze, acho. Doze. Imóvel diante dos degraus. São Eles, é claro, são Eles que me impedem de subir. Não é nada surpreendente: Eles sempre fazem isso, basta um sujeito demonstrar conhecimento suficiente e Eles vêm atrapalhar. Tem sido assim desde sempre; Eles sabem e eu sei.

Já vi outros subindo essa mesma escada. Outros nem tão capazes quanto eu. Muitos não sabem sequer a teoria. Mas estão lá no alto, sorridentes e felizes como eu jamais serei. Sim, jamais. Eu, que sei que a teoria, na prática, é outra.

 

 

 

***

 

 

 

A GRANDE FOGUEIRA

Não era possível mais comer, onde é que já se viu? A água estava racionada. Oferta grande só mesmo a de oxigênio — mas por quanto tempo ainda?

Tudo dependia do Ministério. Da vontade do Ministério.

Do abençoado Ministério que ainda permitia, pelo menos, filmes & livros.

Mas um dia, é claro, o alto escalão do Ministério se reuniu e os homens, austeros, chegaram à conclusão de que filmes & livros poderiam causar grandes danos à ordem e aos bons costumes.

A grande fogueira de livros & filmes durou exatos 70 dias, ao fim dos quais a população, aliviada, agradeceu:

— Graças aos céus temos o Ministério aqui na terra!

O alto escalão sorriu. É claro que sim.

 

***

 

 

 

NADA É O QUE PARECE

Ele chegou ao balcão completamente exausto. Grossos cordões de suor amarelo lhe escorriam pelo rosto, pelo pescoço fino e comprido. O olho direito completamente fora da órbita.

O funcionário do outro lado do balcão sonhava paralelepípedos & centopeias. Seus dutos auriculares desconectados davam a notícia de que não queria ser incomodado. De jeito nenhum!

Mesmo assim, ele chegou ao balcão completamente esdrúxulo. Grossos fitilhos de suor regular lhe escorriam pela boca, pela língua torta e esburacada. A mão direita completamente entediada.

O funcionário do outro lado do balcão babava lembranças & meteoritos. Seus dutos fonéticos atentos:

— Quiqueres, quiqueres, estranho?

Ele chegou ao balcão completamente. A língua se desenrolou feito um tapete:

— Preciso falar!

O funcionário do balcão levantou a sobrancelha velha e desgastada. Do seu olho dormente escorreu um sentido:

— Já falou.

O funcionário do balcão suspirou tulipas & ornitorrincos. Era sempre assim: uma massa de gente dodecafônica e estropiada. Humpf!

— Próóóóximo!

 

 

 

***

 

 

 

VIDA NOVA

Já estou na terceira vida. Mas nem por isso diminuíram os meus problemas. Basta alguém do Ministério saber que estou de vida nova e tudo vai por água abaixo.

Muitos problemas, sabe como é. Não problemas meus, é bom que fique bem claro; o Ministério está sempre se superando em matéria de inventar problemas que não temos. Foi assim na primeira vida. Tudo se repetiu na segunda.

Esta terceira vida me assombra um pouco. Ainda não descobriram. Mas sei que o mercado negro de vidas está sendo ostensivamente combatido. Por Eles.

Ainda não descobriram. Mas o Ministério, eu sei, tem mil olhos, muitas bocas & braços também. É só uma questão de tempo. E depois, ah!, e depois?

Claudio Parreira é escritor. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Tem contos incluídos em diversas coletâneas. É autor, pela Editora Draco, do romance “Gabriel” e também da coletânea de contos “Delirium”, pela Editora Penalux.

 

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