Dedos de Prosa III

Herculano Neto

helenabarbagelata

Arte: Helena Barbagelata

 

NO QUARTEL DE ABRANTES

Recebi o último telefonema. Ele queria o dinheiro ao meio-dia, nenhuma hora a mais. Tentei argumentar várias vezes, disse que não tinha tanto dinheiro assim nem tinha como conseguir, que eu era apenas um reles assessor de vereador (o cargo pode parecer pomposo, mas fora a pose e a vaga cativa no estacionamento eu não era ninguém). Mas ele sequer parecia me escutar, não se alterava com a minha histeria e nunca conversava comigo. Telefonava e só falava o que tinha planejado. Devia ser parte da estratégia não dialogar, o que me deixava mais enfurecido e acuado. Se existe algo que me tira do sério é ser ignorado, gosto de falar, gosto que me escutem, gosto de plateia. Confesso que sou até indelicado com meus interlocutores e mal os concedo o direito de abrir a boca. Agora ele fazia a mesma coisa comigo. Ele devia me conhecer, ele não apenas sabia quem eu era; ele sabia como eu era. Ele também sabia que eu seria capaz de tudo para destruir aquela gravação, que eu estava desesperado. Por isso não o subestimava, todo adversário de mérito tem o meu respeito.

Rastreei suas ligações, em vão. Cinco ligações, cinco horários diferentes, cinco telefones públicos do centro da cidade. No começo, pensava que era alguma brincadeira, porém ele logo me fez perceber que a história era à vera, ele sabia demais. Se aquele vídeo aparecesse eu estaria perdido, seria o meu fim. Com uma arma invisível engatilhada na minha testa não havia muito a ser feito. Saquei o que tinha disponível nos bancos, fiz dois empréstimos com terceiros e vendi o automóvel da minha esposa, ainda assim faltava bastante, mas acreditava que conseguiria renegociar cara a cara. O encontro ele marcou no Largo Dois de Julho, local muito movimentado, frequentado por todo tipo de gente, certamente pra não chamar atenção. “Como saberei quem é você?”. “Não se preocupe, você saberá”. Desde o início foi a única pergunta que ele respondeu.

Duas horas antes, já estava no local combinado. Comprei uma latinha de cerveja num bar e me sentei num banco de praça, com a maleta entre as pernas, tentando aparentar tranquilidade. Ele não demoraria, talvez já estivesse me vendo de uma daquelas janelas velhas, se divertindo com a minha tensão, mas não dei esse prazer a ele, não novamente. Em um dos seus telefonemas ele mandou lembranças para Melissa antes de desligar. Melissa é minha filha do meu primeiro casamento, tem dezessete anos e mora com a mãe na Federação. Me controlei enquanto pude, antes de decidir investigar — acho que eu estava vendo muitos filmes. Quis saber se ela tinha e quais foram seus últimos namorados, seus horários, suas rotinas, coisas que eu não fazia a mais vaga ideia. Cheguei a imaginar que ela e a mãe poderiam também estar envolvidas, porém vi o absurdo a que eu estava me submetendo: era só uma jogada, e eu caí. Não sei se era a intenção dele, mas comecei a desconfiar de todos a minha volta, ninguém escapava do meu paranoico controle de desconfiança. Concluí que era uma pessoa próxima, que ele estava acompanhando meus passos, me analisando, averiguando o efeito dos seus telefonemas, aguardando o momento oportuno para me desestabilizar. Era realmente um adversário que merecia meu respeito.

Meio-dia e nenhum sinal dele, comprei mais duas cervejas e continuei na minha espera. Todos que passavam por mim eu olhava detidamente, como se a qualquer instante fosse falar comigo alguma frase solta, codificada, que facilmente eu interpretaria. Um mendigo, um flanelinha, uma estudante, um bêbado, uma periguete, uma dona de casa carregando sacolas de compras, um vendedor ambulante, um velho, todos eram suspeitos. “Nada de gracinhas”, foi a recomendação que ele mais repetiu. Quis recrutar alguns amigos que eu tenho na milícia, gente experiente que sabe fazer um trabalho limpo, sem vestígios, sem alardes, mas seria melhor não correr nenhum tipo de risco, ele parecia ser muito esperto, não era um aventureiro, sabia o que estava fazendo. A cada minuto minha ansiedade aumentava, não queria, mas estava nervoso. Mais de uma hora da tarde, quanto ainda devia esperar? Sem saber a resposta, fui ficando, entre uma cerveja e outra, até ao anoitecer.

Voltei para casa exausto, me sentindo pior do que eu estava, o pesadelo não tinha acabado, brevemente começaria tudo outra vez. A qualquer momento o telefone tocaria, mantendo o suspense, foi o que eu pensei quando resolvi dormir na sala. Ele deve ligar hoje, foi o que eu pensei quando disse para a secretária do gabinete que eu não estava para ninguém. No entanto, seguiram-se os dias, os meses, e nenhuma notícia dele. Misteriosamente, ele tinha desaparecido. O que aconteceu? Provavelmente, jamais saberei nem pretendia especular. O certo é que aprendi uma grande lição disso tudo: não negocio mais nada, nada mesmo, sem ter a mais absoluta certeza de que eu não estou sendo grampeado.

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“A MINHA ALMA NUA”

“A minha pele de ébano é/ a minha alma nua”
(Alegria da Cidade, Lazzo/ Jorge Portugal)
 

Houve um tempo em que eu tinha desistido de mim, não sabia o que era a luz do dia nem alimento que não fosse bebido, injetado ou aspirado. Quis cair de boca na boca da noite e acabei caindo nos dentes da Boca do Rio. Era requisitado pelos playboys da Pituba, pois constava sempre a massa boa, “a de qualidade”. Curtia a noite até a última ponta: suas dores, seus atalhos, seus clichês, suas miragens. Até conhecer Clara, uma negra de porte altivo e cabelos de nylon, que realizava um trabalho social com as prostitutas e travestis afrodescendentes da orla. Eu era útil para ela porque sabia o ponto e o nome de todas, algumas até o nome de batismo. Cheia de revolta e ideais socialistas, me fascinou seu discurso caduco, suas vestes de princesa africana e sua idolatria por Omolu, “o que mata sem faca”. Seu conceito de igualdade pouco se chocou com meu desencanto humanitário. Foi a minha pele parda, de mestiço do Recôncavo, que não combinava com a dela. Clara era o arco-íris de Madagascar, mas me considerava muito branco para o seu universo.

***

 

 

 

AQUELES SEIOS

 

Trabalho no setor de mamografia de um hospital público há pouco tempo, mas o suficiente para eu perceber que sou o homem errado no lugar errado. Não sou uma peça na engrenagem, sou um hamster na roda. Atendo oito pacientes por turno, nenhum a mais. Mulheres amedrontadas na companhia dos maridos ou das filhas, com suas tetas velhas, flácidas, pálidas, gastas e adormecidas. Para mim, indiferentes montes de carne. Até eu conhecer Dona Filipa.

Dona Filipa apareceu no meio do expediente de uma quarta-feira. Quarenta e quatro anos, seis filhos, semi-alfabetizada, moradora da zona rural. Era o que dizia sua ficha. Tomei o último gole do café frio e, enquanto assinalava mecanicamente algumas opções do formulário, pedi para ela fazer a gentileza de tirar a roupa. No entanto, quando vi aqueles seios, emudeci assustado, logo eu, tão acostumado à malta infinda de donas de casa desnudas deparei com o mais belo e perfeito par que já  existiu. Antes, acreditava que peitos bonitos só frequentassem clínicas particulares. Dispensei-a sem realizar seu exame.

Alguns meses depois, Dona Filipa retornou. E novamente não realizei seu exame. Se aqueles seios tinham algum vestígio de câncer eu preferia não saber.

 

 

 

***

 

 

 

DIA DE VISITA

 

Hoje é dia de visita. Se fosse em minha casa, deixaria tudo arrumado, arejado. Prepararia aperitivos, abriria as janelas, trocaria as cortinas, lustraria os móveis, teria livros de fotografia e poesia na mesa de centro, colocaria os gatos do lado de fora, flores nos vasos da sala. Mas só se a visita fosse em minha casa. A visita em questão é à penitenciária, onde sou simultaneamente convidada e anfitriã. Sou eu que preparo os biscoitos, bolos, pães; compro frutas, cereais, cigarros. Esse rito semanal tem quase dez anos, desde que Pedro fez aquela bobagem, não deveria, mas me acostumei.

A palavra penitenciária é derivada de penitência, que quer dizer arrependimento de algum pecado ou culpa. Mas a última coisa que se encontra lá dentro são arrependidos, apenas amontoados de presos. A palavra presídio define melhor a situação.

Minha preocupação agora é a frente-fria que aportou sobre a cidade, dizem que nos últimos dias choveu o esperado para o mês inteiro, a capital praticamente parou, o que não é nenhuma novidade. Salvador é uma cidade de verão apenas no cartão-postal. Basta qualquer chuvinha para alagar as ruas, congestionar o trânsito, desmoronar encostas, desabrigar o povo e aparecer governante na TV fazendo promessas. Será mais trabalhoso sair com tantas sacolas debaixo desse temporal; no entanto, esperar é correr o risco desnecessário de perder o horário de visitas. De ônibus, com sorte, chegarei em duas horas.

O diretor do presídio, para não criarmos vínculos, costuma revezar as agentes que fazem a revista: procedimento inútil. Venho aqui há tanto tempo que sou amiga de todo mundo, nem me revistam mais. Porém hoje a funcionária nova quer que eu deite e abra as pernas, pede com a autoridade de recém-empossada. Ela está toda orgulhosa em seu colete preto, deve ser do tipo que engraxa repetidamente os sapatos e o distintivo. Não me incomodo, passo pelo constrangimento como se fosse uma consulta ginecológica.

Enfim, o portão principal é aberto e o primeiro grupo revistado é liberado para entrar. Voltou a chover forte. A área de visitas fica numa galeria do outro lado do pátio.

Não é permitida a entrada de guarda-chuvas.

 

Herculano Neto nasceu em Santo Amaro da Purificação (BA). Publicou pela Fundação Casa de Jorge Amado o livro de poesia “Cinema” (Prêmio Braskem Cultura e Arte, 2007) e pela Coleção Cartas Bahianas da Editora P55 o volume de contos “Salvador abaixo de zero”. Organizou a coletânea de contos inspirados em canções de Raul Seixas, “Outro livro na estante”, pela editora Mondrongo; pela mesma editora lançou “A Casa da Árvore” (poesia).

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