Dedos de Prosa III

Roberta Silva

 

suzanalatini

Foto: Suzana Latini

 

O Lamentável fim da família de Dr. Conrado, o Benemérito

 

Moro numa daquelas casas que rodeiam o belo Central Park, nome atual do antigo parque da Colina, área nobre de nossa pequena e antiquada cidade. Ao redor desse parque, a nata de nossa sociedade. Famílias invejavelmente bem sucedidas e felizes que passam os domingos fazendo piqueniques no verde gramado do parque, como este fosse, e é, uma extensão de seus jardins. Nossa cidade é próspera, apesar da pequenez e pacata, apesar da rotina e grande distanciamento social entre as classes. Somos pacíficos e católicos e isto nos basta. Durante muitos anos, somente dois acontecimentos causaram escândalo entre o seleto grupo dos moradores do parque. O primeiro foi minha mudança para cá. Eu, Maria da Piedade, ou Piê, como era chamada no posto de saúde em que trabalhava como atendente de farmácia, filha de mãe solteira, herdei esta casa de meu pai, um ilustre personagem político da cidade. Seu desejo último foi redimir-se de sua omissão deixando para mim todos os bens que possuía. Nos primeiros anos fui apontada por meus vizinhos na rua e no parque e, primeiro por causa de uma exclusão descarada, depois, por convicção, passei a aproveitar os domingos na janela a observar o balé social, no qual bailam e representam nossa tosca comédia as pessoas respeitáveis de nossa sociedade. Deixaram de falar de mim após a morte de Dr. Conrado, o benemérito. Morte lamentável, mas não tanto quanto o lamentável fim de sua família, que aconteceu após a trágica morte.

Dr. Conrado era um advogado conhecido. Bonito, jovem, culto, bem sucedido. Era casado com uma mulher bela, jovem, culta, extremamente tímida, excelente dona de casa e pai de três adoráveis, educadíssimas e também belas crianças, o primogênito e duas meninas. Eram invejados pelos vizinhos, inveja branca dizia-se, daquela que não se deseja o mal. Exemplo vivo de uma família perfeita. Durante as tardes de domingo, no parque, estavam sempre rodeados de amigos. Seus quitutes eram fartos e os mais saborosos, a conversa deles era a mais agradável e suas crianças nunca davam um pingo de trabalho. Quando as mães tinham de ralhar com seus filhos por terem cutucado os peixes do lago com espetos ou darem rasteiras nas bengalas dos velhinhos, quando uma esposa descontente cobrava do marido um pouco mais de zelo ou um marido, cansado das lamúrias da mulher, desejava secretamente que a dita engolisse a língua e se calasse numa crise convulsiva de auto sufocamento recorriam à imagem da família de Dr. Conrado como exemplo a ser seguido, meta a ser atingida. Eram assunto também, nas rodas, as diversas obras de caridade que patrocinavam e as gordas doações nos jantares beneficentes feitos por ele e sua família.

Como num conto de fadas invertido, essa era uma história feliz que tivera um triste final. A princípio notaram que o jardim de Sra. Conrado não estava mais impecável. Ervas daninhas proliferavam a olhos vistos e depois estas substituíram definitivamente os lugares de destaque das folhagens nobres. O pior era que isso não acontecera por falta de zelo, tristeza recolhida ou luto. Parecia que a jovem viúva estava dando os primeiros sinais de enlouquecimento. Fora flagrada diversas vezes cultivando os capins, carrapichos e ervas de passarinho no que agora não era mais uma pálida sombra do lindo jardim de antes. Pararam de frequentar o parque aos domingos. O filho mais velho, depois que adolescera, perdeu-se completamente. Fazia teatro de rua, pintava os cabelos de cores vivas e os olhos e as unhas de preto. Viam-no circular com um colega um tanto afeminado diversas vezes pelo bairro em conversinhas purpurinadas, trôpegas e cheias de risinhos. A filha do meio vestia-se à moda dos novos hippies e vivia acompanhada de pessoas que não condiziam com sua classe social. A caçula ainda trazia muito dos modos de antes da morte trágica de seu pai, mas temiam cedo ou tarde contaminar-se também com o caos que se instalara no seio daquele lar. No seu andar, apesar de ainda elegantemente vestida, notava-se um leve desleixo nos movimentos, um desleixo que não se permitiria antes, visto que era, dos três, a mais elegante. Pela ausência demorada aos piqueniques de domingo descartaram a possibilidade do luto familiar, pois saiam todos, nesses dias, animados em seus novos trajes, rumo a um programa desconhecido além das fronteiras do rico boulevard.

Pela janela presenciei a chegada de um caminhão de mudança que parou à porta da casa da família de Dr. Conrado. O grand-finale deste escândalo será quando descobrirem que Sra. Conrado está de mudança. Com a família, mudará para outro lado da cidade para amasiar-se com um livreiro comunista e pé rapado com quem ela havia tido um pequeno affair na juventude. Superará, por certo, em pontos de audiência a notícia da morte do estimado doutor após ingerir uma sopa de mandioca brava, preparada para ele pela zelosa esposa, naquela tranquila noite de inverno.

Conheci Sra. Conrado tempos antes de me mudar para cá, durante os anos em que ainda trabalhava na farmácia de um posto de saúde afastado. Ela veio pegar gratuitamente os medicamentos receitados pelo doutor do posto em nossa farmácia. Ela apresentou-se na portinha apresentando a receita, minha repulsa foi imediata, pois se via logo de cara que era uma mulher que não precisava dos medicamentos grátis que distribuíamos para as pessoas menos afortunadas que eram tratadas ali. Era uma lista enorme, antiinflamatórios, antibióticos e ataduras. Ofereceu-se muito constrangida para pagá-los e senti-me um tanto arrependida pelo julgamento precipitado. Depois daquele dia, ela voltou várias vezes. Comentava-se a boca pequena entre os funcionários a natureza de suas consultas secretas. Ela entrava, às vezes só, outras acompanhando um dos filhos e depois passava na farmácia. Nunca dizia nada e parecia resignar-se ou não perceber os olhares de reprovação dos outros pacientes e funcionários dali.

Num dia igual a muitos outros, em que ela havia ido ao posto em busca de cuidados e remédios, sem motivos aparentes, ignorando completamente a fila que formara atrás de si, começou a falar. Sua voz era baixa e suas palavras polidas e bem escolhidas. Contou-me como alguém contaria a um padre em uma extrema-unção sobre como havia conhecido o marido. Após um namorico problemático com um colega de escola de nível social muito inferior ao dela encontrou-o, recém formado, belo, companheiro e disposto a terminar com suas angústias para sempre. Foi o casamento dos sonhos. Pouco depois da lua-de-mel, o marido dera os primeiros sinais que nunca esqueceria que um dia ela havia amado outro homem. Desconfiava de seu amor. Vasculhava suas coisas, seguia-a pelas ruas. Primeiro veio as discussões à meia voz para não serem ouvidos pelos empregados. Depois o primeiro tapa, o primeiro soco. A primeira gravidez frustou-se em um aborto devido a um chute que levou na barriga. Tirando a vez em que ele lhe socou a primeira vez, as outras nunca lhe deixaram hematomas que não pudessem ser omitidos por uma blusa, um echarpe, um xale. O médico da família ameaçou denunciá-lo, depois que se esgotaram as desculpas para os ferimentos e infecções, caso ela não o fizesse pessoalmente. Ela não o procurou mais e nas reuniões em que se encontravam convencia-o de que não aconteciam mais aquelas coisas e que estavam todos muito bem e felizes. Além do ciúme, sua excessiva mania de limpeza e perfeccionismo o fazia perder a paciência com a menor sombra de poeira ou objeto deixado fora do lugar. Isto era mais fácil de controlar antes da chegada das crianças, mas depois dela sua vida era uma eterna inspeção atrás de coisas que pudessem desagradá-lo. Lógico que os filhos não podiam acompanhar o cuidado da mãe. Vez ou outra deixavam cair um talher, manchar um vestido ou soltavam uma risada inoportuna e também sofriam com os corretivos do zeloso pai. Ouvi calada e depois a chamei para dentro do meu cubículo. Atendi as pessoas que esperavam na fila rapidamente e tranquei a portinhola. Conversamos durante algum tempo. Ela dizia que não havia como sair de lá. Todos iriam ficar contra ela, era impossível imaginar que Dr. Conrado, o benemérito, fosse capaz daquelas coisas. Ele mesmo a advertira que a internaria num manicômio caso tentasse levantar algum falso sobre sua honra. Ficamos amigas, eu a ouvia, quase todas as semanas, sobre a violência que aquele homem cometia impunemente contra a família acuada e indefesa. Um dia decidi por tentar ajudá-la. O filho tinha sido submetido, pela terceira vez, a uma sutura de pontos de um ferimento. O pai tinha por ele uma fúria mais contundente. Dizia que daria àquele ser patético uma postura máscula e viril nem que para isso tivesse que quebrá-lo em pancadas. Eu disse à minha amiga que tinha como dar a ela um veneno que ela poderia misturar a sua comida e ele morreria rapidamente. Sugeri que ela fizesse uma sopa de mandioca, pois era sabido que esse tipo de alimento vez ou outra causava uma desgraça.

O velório foi preparado com muita pompa pela família do doutor. Queriam aproveitar a visita relâmpago do governador pela cidade e pediram ao diretor do hospital, que era o mesmo que acompanhava a família do venerável defunto, para que fossem dispensadas as formalidades e que este assinasse o atestado de óbito o mais rápido possível. Foi mais fácil que imaginavam e foi, na época, aquele velório o evento social mais elogiado nas colunas sociais.

 

Roberta Silva é escritora, edita o blogue Ragi Moana. Tem poemas publicados na internet, entre outros sites, na revista Germina e no Escritoras suicidas. Faz parte de Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas (São Paulo: Terracota Editora, 2009). Vive em Belo Horizonte.

 

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