Dedos de Prosa III

André Mellagi

 

Foto: Kristiane Foltran

 

Vestígios

Entrei novamente na casa e investigo o silêncio que retorna após trancar a porta. Derrotado, mais uma vez o vazio preenche cada mobília da sala intocada. Desde que você foi embora, a poltrona permanece mutilada em seu lugar e os corredores já não ecoam mais seus passos descalços. Foi inútil tentar recuperar a petúnia; há dias suas mãos não dosavam a água e a entrada da luz que evitariam uma outra presença sua a se despedir da casa. A sua música, que antes me aborrecia e lhe concentrava sentada na poltrona incompleta, agora eu a suportava como um cubo mágico que desisti de decifrar, mas que insistia em combinar cores e tonalidades avessas. Os copos sem batom, os cinzeiros limpos e os filmes de cinema perdidos no jornal sem as sublinhas de esferográfica, eram assinaturas de giz no asfalto apagadas pela chuva. Sabia que estava próximo à cozinha quando o cheiro de canela misturava-se ao odor de almíscar, mas que agora atravesso despercebido até abrir e fechar a geladeira sem decidir por nada. Nenhuma presilha restava nas gavetas como uma peça arqueológica, e nenhum papel sobre a mesa continha os desenhos rupestres de suas letras escorregando uma anotação pelo telefone. Foi uma explosão que acendeu, um trovão que uivou; agora são sombras que avançam, mudez que cala. Sobrou apenas comigo a antiga fotografia guardada que escondia, entre os cabelos desalinhados entrelaçando dois rostos a sorrir numa praça desfocada, o movimento que se distende antes e depois daquele instante, a lembrança amarelecida de unhas peroladas, sorvete de creme e toalhas molhadas.

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O Testamento de Ícaro

 

De volta à mesma esquina por onde Ícaro passou, estava novamente defronte à loja de 1,99 e perdido. As muralhas envidraçadas dos prédios domesticavam sua visão nas ruas estreitas da cidade, que perfurava cartazes e olhares desviantes. Às vezes, estes olhares irrompiam em desejo e violência, depois se esqueciam. Os carros seguiam a correnteza arterial dos viadutos e avenidas, sem encontrar um escoadouro que levasse a uma saída do labirinto. Ícaro olhou para o prédio mais alto. A maior lembrança de sua infância, quando subiu pela primeira vez sozinho a copa de uma oliveira em Creta, foi a alegria ainda maior na face de seu pai. Mais uma vez, queria mostrar a Dédalo que saberia decifrar aquele labirinto. De nada adiantavam os mapas que abstraíam os quiosques de garapa e os bueiros entupidos, em quadrados indiferenciados sem indicar qualquer escapatória. Queria ter a visão de Urano, que do alto tudo enxergava, com prazer quase científico, sua colônia de formigas amontoadas que se espremiam entre as casas de cobertura de telhas escamadas. Ícaro subiu o elevador do prédio mais alto, e do último andar olhou ao redor o continente de titãs de concreto. Mas ainda faltava muito para arranhar o céu; era preciso dar um salto decisivo para o alto. Apenas se afastando do turbilhão urbano teria a percepção daquela imensa mancha viva de cimento, metal e plástico, cujo vai-e-vem se harmonizava numa homeostase compreensível. Precisaria içar sua jangada para atravessar oceanos; levantar o braço para apanhar estrelas; subir degraus para escalar montanhas; lançar o olhar em direção aos limites do infinito. Implante-me asas, meu pai! Veja-me voar na morada dos deuses! Dê-me a oportunidade de vislumbrar daqui de cima, o quão pequeno é seu labirinto! Nada mais precioso que a vertigem! Venha, vento, levar-me acima das nuvens! Não se preocupe, pai, voo alto para não ouvir mais as vozes emaranhadas. O mundo se silencia e enfim ouço dizer-me sua extensão. Mais alto, vento! Que a iminente queda ainda conserve a imagem derradeira de que um dia fui livre!

 

 

 

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O Jardim do Éden

Entre o Tigre e o Eufrates, encontrava-se um anjo morto com napalm. As asas mutiladas e a espada flamejante ao chão já não mais guardavam os resquícios de um antigo jardim cujos portais foram arrombados com tiros de morteiro. Dos destroços da cúpula de uma mesquita, o crescente refletia as labaredas que calcinavam os querubins abatidos por uma bateria antiaérea. No jardim, apenas a extensão do deserto que enfim invadiu as velhas cercanias, oásis que subitamente foi envolvido pelo deserto à marcha das cargas deflagradas. Uma árvore seca restava no meio daquele jardim esquecido, exalando a gás mostarda e rodeada de ossos espalhados ao chão como folhas secas. A tempestade de areia e pólvora devastou a paisagem onde já não mais importavam os nomes que batizaram plantas e animais; tudo era um amontoado de cinzas revolvidas com petróleo. Pois se a vida ainda estava lá, empreendeu-se com a razão e o conhecimento os meios de se apoderar dela; “haja luz”, disseram no princípio os criadores que manejavam o bastão, o arco, a espada e o fogo. Assim, da escuridão abriam caminhos passando por cima de si próprios até alcançar o fruto que faltava. Os anjos já não tinham mais como defender aquele jardim; os deuses mortais já sabiam voar, mergulhar, entrincheirar. Disputavam o que achavam o que era a vida em mútuas decapitações. Estava para começar o inverno mais quente do ano.

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Encontro

De manhã ele acordou e silenciou o despertador, que deixou o dia murmurar. Ela se levantou e foi escovar os dentes, enquanto tentava juntar as peças de um sonho. Ele tomou o café sem açúcar e amargou as notícias de ontem. Ela olhou um vaso de flores e compadeceu-se diante de pétalas murchas. Ele deu partida e misturou-se resignado à massa de carros congestionados. Ela emudeceu as buzinas ouvindo sua música na bicicleta. Ele queria dois processos protocolados até o meio-dia e uma sequência de três ace na quadra de tênis à noite. Ela queria a notícia do pai de Gisela e um bom capuccino à tarde. Ele entrou no escritório, ligou o computador e coçou a testa. Ela chegou no consultório, vestiu o avental e estalou os dedos. Ele tamborilava teclas e ela organizava espátulas. Ele sacramentava resmas de papéis e ela vasculhava bocas. Parágrafo único do incisivo inferior lateral; bruxismo em desacordo com disposição legal; inventários ortodônticos.

Pausa para o almoço. Só um processo protocolado e Gisela ainda não chegou. Saem do escritório e do consultório, encontram-se na fila do restaurante por quilo. Ele deixa a pasta cair; ela apanha a pasta do chão e devolve a ele. Ele agradece e volta a decidir sobre o grão-de-bico. Ela verifica as unhas e pensa em adotar uma criança. Sentam em mesas separadas. Chove hoje à noite e chegarão tarde em casa.

André Mellagi, nascido em São Paulo, é formado em Psicologia, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP. Participou de coletâneas de contos, tais como a primeira edição da revista Pulp Fiction do site Homo Literatus, além de publicar em blogs de literatura. Teve coletânea de contos que recebeu Menção Honrosa em 2014 no Programa Nascente da USP, e foi obra pré-selecionada ao Prêmio SESC de Literatura de 2016, a ser publicada pela editora Patuá em 2017.  

 

 

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