Dedos de Prosa III

Cesar Cardoso

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

Coreografia

 
Para Olivia Alvarez

 

Está sozinha no palco, apenas os espelhos a multiplicam. Ela e seu tutu, que a deixa quase nua. Ela e seu corpo e a dança. Ela e seu olhar, que só vê o palco, a dança, seu corpo, os espelhos.

Quando a música termina, a bailarina não agradece a ninguém. Simplesmente para no palco. Para dezenas de vezes em seus espelhos. Dezenas de vezes imóvel. Estará esperando os aplausos?

Até que as duas mãos de seu público levantam a caixa, dão corda novamente, pousam e observam.

 

 

 

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Parabéns, papai. Parabéns, mamãe.

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(Este produto só é comercializável com seres humanos que possuam o selo de qualidade Maxchild.)

 

 

 

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Robinson Crusoé

 

Subo até o topo da duna de areia e vejo bem longe um sinal de fumaça. É vida, com certeza! Desço a duna a toda, fazendo os cálculos de como chegar até lá, e sigo a rota pensada, torcendo para não me perder mais uma vez.

Algumas horas depois subo mais uma duna e, ao chegar no topo, respiro aliviado. Desta vez não me enganei. Lá embaixo estão os motivos do sinal de fumaça. Um homem sentado em frente a uma fogueira. Desço ansioso, segurando a faca.

Ouço um ruído atrás de mim e me viro com o revólver engatilhado. Ele ainda tem tempo de saltar, mas eu atiro, acerto em seu rosto e ele cai ensanguentado e imóvel, com a faca a seu lado.

Me certifico de que está morto, pego a faca, subo até o topo da duna de areia e vejo bem longe um sinal de fumaça. É vida, com certeza!

 

 

 

 

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Os bravos soldados do fogo

Para Cibele Fernandes

 

Acordei com a sirene. O barulho veio aumentando e eu esperei que fosse diminuindo. Mas não. Parou à minha porta. Levantei rápido da cama e corri para abrir a porta da frente, já dando de cara com os bombeiros carregando as mangueiras, gritando ordens, cercando o quintal e procurando, procurando. Eu também não encontrava nenhum sinal de fogo. Mas não tive tempo de alertá-los, eles já acionavam os hidrantes e encharcavam a casa toda. A princípio, não entendi aquele procedimento e até me aborreci. Mas eles foram gentis e pacientes e me fizeram ver que, por mais que a gente não perceba e mesmo não encontre, há sempre um incêndio.

 

 

 

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Classificados 1 – Contentamento

 

Para Gabriela Amaral

 

É um bom emprego. Trabalhar com água é muito agradável, melhor do que com gente.

Primeiro tampo a pia, depois abro a torneira e deixo encher. Quando a pia está cheia, fecho a torneira, pego o conta-gotas e faço a sucção. Daí é só sair da casa, atravessar a ruazinha de terra e já estou na praia. Vou até o mar e esvazio o conta-gotas. Depois volto e repito a operação até esvaziar a pia. Então é só encher de novo e recomeçar.

Tem alguma coisa a ver com as marés, mas eu ainda não entendi muito bem. O importante é que eles estão contentes com o meu trabalho.

 

 

Cesar Cardoso é carioca e formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2012, publicou o livro de contos “As Primeiras Pessoas”, pela editora Oito e Meio. E em 2015 lançou “coisa diacho tralha” (poesia), pela editora Texto Território. Escreveu para a revista Caros Amigos e para os jornais O Pasquim e O Planeta Diário. É roteirista, tendo escrito programas de tv como Tv Pirata, A Grande Família e Sai de Baixo. Atualmente, é roteirista do programa Zorra, que em 2016 foi indicado ao International Emmy Awards de melhor comédia. Os contos aqui selecionados fazem parte do seu mais novo livro, “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos”, publicado recentemente pela Editora Oito e Meio.

 

 

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1 comentário

  1. É um enorme prazer fazer parte da Diversos Afins, estar entre esses caminhos e palavras, com tanta criatividade e pique.

    Obrigado, amigas e amigos da Diversos Afins.

    Cesar Cardoso

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