Aperitivo da Palavra

Dividir-se para multiplicar: uma leitura de “Desinteiro”, livro de poemas de Guelwaar Adún

Por Alex Simões

 

“É colocando a violência do signo poético no interior da ameaça de violação política que podemos compreender os poderes da linguagem” (Homi Babha, O Local da Cultura, p. 97)*

 

 

 

O que pode ser um livro de poesia? Uma arrumação de poemas temporariamente suspensos no tempo, espacialmente dispostos num livro, ou unidade de sentido mediante o esforço de um artista que o assina e o pensa e o executa como projeto? Desinteiro, livro de estreia do experiente poeta-editor Guellwaar Adún, publicado em 2016 pela Ogum’s Toques, é um projeto desconcertante e consistente, um livro cuidadosamente pensado e executado para abalar a cena literária brasileira. Um livro de 164 páginas, dividido em quatro partes (Corda Retesada para Tiro, o Arco Armado, A Flecha, O Alvo), conta com capa belíssima de Dadá Jaques, ilustração de Raimundo Santos Bida e projeto gráfico do poeta que assina a obra.

Em Desinteiro o fragmento nos leva ao duplo, ao múltiplo, ao mesmo tempo que compõe um todo, por ser desinteiro, e não suas partes, suas metades. I-Tal e qual o livro, este ensaio de leitura pede licença a Exu para falar, Padêlicença. O “signo-como-símbolo” ** é tanto o dono do falo quanto o dono da palavra. É assim que se pode entender o trocadilho como estratégia de contra-ataque, de leitura descolonial da tradição, do poema como lugar do isso-e-aquilo. Eixo e Exu são muito mais que simples contraposições, são índices de um ouvido atento para a diferença entre o que se escreve e o que se diz, de um poeta que traz o que traduz, que se revela no que escuta e que problematiza na escrita o que a própria escrita pensada acriticamente não assimilaria como semelhante-quase-igual. Quando “encruzilhadas” é preterido por “encruzas”, tradições discursivas aparentemente distantes são alinhavadas: os pontos de candomblé e as rimas do rap. Ou como explicar a presença do étimo “encruzas” como item lexical no repertório de um poeta meio carioca, meio baiano? O seixoLalu acompanha Ogum(‘s Toques) e Oxóssi. Cancela ejós, dando luz a outros nós, sóis.

O filho de Oxóssi é guerreiro por definição. Reteza a Arca para o tiro e acerta o alvo branco. Desafia o olhar simplista, mostra o poder dilacerante que se exerce pela palavra, no alvo da página, no jogo entre palavra e alvo, nos interstícios, nas apropriações e nas aproximações: o rondeme é tanto o lugar do sacrifício ritual, quanto o panóptico sagrado a que voluntariamente se dirige o iniciado. Aqui o yorubá (e outras línguas africanas que meu ouvido colonizado não identifica), o espanhol, o francês, o inglês e o português se encontram no mesmo poema, dizendo serem os mesmos os problemas enfrentados na diáspora pelos filhos de África em seus encontros e desencontros, mediados pelos modos de gritar contemporâneos. Desse modo vemos um “eu” que vai aos poucos se dilacerando, em consonância com o rito de iniciação: meu eu,/ despido de meu corpo, (Diga a verdade às crianças); um eu que é um lugar sagrado: Meu corpo é meu templo (I-tal); um eu que se retesa no Arco Armado.

E é n’O Arco Armado, que o guerreiro e sua autoapresentação cede lugar para a cena da guerra e para a heteroapresentação (Ferdinandeando, Roteiro para Semembe). A guerra se dá na linguagem, na disputa por um território, naquilo que tem lugar (tempo) em e toma lugar de(espaço), relembrando Fanon, porque “Relembrar Fanon é um processo de intensa descoberta e desorientação. Relembrar nunca é um ato tranquilo de introspecção ou retrospecção. É um doloroso re-lembrar, uma reagregação do passado desmembrado para compreender o trauma do presente.” (Babha, 2005, p. 101) Fanon que, por sinal, é explicitamente retomado no texto de Guellwaar, não só em nome próprio e intimamente citado pelo prenome, como pela apropriação em forma de verbo em primeira pessoa, num dos poemas que, segundo minha limitada e parcial avaliação, constitui um dos momentos mais potentes do livro, inclusive por nele ouvirmos ao fundo a música versista de Cruz e Souza arrematando a polifonia complexa desse ouvido de músico-e-poeta: Frantz palavras e sotaques, fanoneio / portal do inverno, me recolho e me esgueiro. (Portal)

Já em A Flecha, muda-se a estratégia em relação aos nomes próprios. O que, em outros momentos é apropriação e de nomes próprios, para sinalizar afeto e/ou citação como estratégia poético-discursiva (baldwinamente, saramagueando, fernandiando, fanoneio), aqui é enfrentamento e nomeação: Thomé de Souza, não por acaso, vem em primeira pessoa logo após um poema em que é mencionada uma encomenda do rei (o rei e o mar) e antes do poema dedicado a Hamilton Borges Walê, um guerreiro nomeado e uma espécie de irmão-poético de Guellwaar, com quem compôs o grupo “Os Maloqueiros”, levando a poesia e o teatro para as ruas de Salvador. Essa parte termina no que seria o livro como tradicionalmente o concebemos, com a autoria assinada por um sujeito empírico, que assina uma construção verbal, mas que aqui é arquearia do verbo, em que o alvo é sempre o alvo.

Em O Alvo, o desinteiro se realiza, pleno. Lugar de inscrição do leitor, de incompletude assumida, de assunção da página em branco como locus do entrave, do conflito e da negociação entre leitor e autor, do princípio de cooperação entre o leitor que escreve e o poeta que lê: rasura e traço, poesia militante e não limitante, porque incompleta por consciência de si, por consciência do outro. Poesia em favor de, por ser poesia contra, no sentido formulado por Ricardo Aleixo (2000)***:

 

Vejo….. a ….“boa poesia” ……como…. .sendo ….aquelaque é,
independentemente. de. seus assuntos, contra. Contra a língua
cotidianaa. e ..a ..literária, contra. a …poesia anterior, contra os
conceitos correntes ..de poesia,. contra .a .poesia das palavras
“poéticas”,..contra ela mesma,contra a comunicabilidade fácil,
contra…. .o difícilde superfície, ..contra a.. História, ..contra a
filosofia,…… contra. .a. ordem.. social e .política vigente, contra a
ditadura do sentido único, contra a ideia de identidade (étnica,
cultural, …….religiosa,….. sexual etc.) ….enquanto uma “ficção
simplificadora” …..que ..tem como ..fim último ..a .exclusão da
alteridade, …..contra, ..enfim, ..a enfadonha.. convicção. de que a
poesia está morta.……………… ………………………………………………………..

 

Desinteiro é, portanto, um aceno em direção à poesia viva, que assume riscos, que interpela a participação ativa de leitoras e leitores, que dá a cara a tapa, propondo desafios e trazendo à cena vozes silenciadas, é a pergunta de Fanon “O que quer um homem negro?” tentando ser respondida: o homem negro quer, entre outras coisas, escrever poemas, dizer que está vivo, que caminha sobre espinhos brancos, assumindo sua condição de guerreiro em combate.

E eis a Dicção da Flecha, que prepara a cena do combate ao mesmo tempo que afirma o sagrado do combate, porque a guerra se faz no discurso, na inscrição do sujeito nesse discurso,  e também na cisão desse sujeito, deslocado, diferenciado, reencenando as autoabolições, para, re-nascer. E aqui encerro a minha cena da cena, encerrado nesse discurso em que também me vejo, re-nascido, dividido e multiplicado, desinteiro, irmanado ao sujeito que opera o procedimento cirúrgico e demiúrgico na linguagem:

 

Em busca da paleta imperfeita
na mosca, sem vida fácil,
fixação, incerteza,
zarabatana espreita
olho ácido,ágil
mira acesa

 

 

Notas:

 

* Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláudia Renate Gonçalves.

 

** Barthes, segundo Babha.op. cit.

 

*** Na Encruzilhada, no meio do redemoinho. In: Pedrosa, Célia (org). Mais Poesia Hoje. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. P. 154.
 

 

Alex Simões é poeta, escritor, professor, performer e tradutor de poesia. É autor de “Estudos para Lira” (inédito, Menção no Prêmio Copene 2001), “Quarenta e Uns Sonetos Catados” (Domínio Público, 2013), “(hai)céufies” (Esquizo Editora, 2014) e “Contrassonetos Catados & Via Vândala”(Mondrongo, 2015). Colabora em Revistas Literárias, antologias e em blogs/sites de literatura. Ministra oficinas de poesia, com foco em versificação e ações performáticas em poesia. Recentemente traduziu o livro “Entonces Daniela” (Lummen Editora, 2015) e coeditou um número da Revista Organismo. Integra o Mapa da Palavra e é um dos colaboradores da Revista Barril.

 

 

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