Dedos de Prosa III

Marcus Vinícius Rodrigues 

 

“Gato” . Ilustração: Bárbara Tércia

 

TINTA NEGRA SOB AS UNHAS

 

Para Bárbara Tércia,
inspirado em um desenho seu.

 

— É melhor ser órfão de pai morto do que órfão de pai preso.

A frase veio de muito longe, lá da infância, assim que a janela se fechou. Marcelo não teve como reclamar que as janelas é que devem ser abertas quando as portas se fecham. Não pensou isso nem lembrou de Deus, mas se arrependeu de ter dito aquilo ao primo. O fato é que eles não tinham pai, não importava se um estava preso, o de Tiago, ou se estava morto, como o de Marcelo.  Aquela frase, no meio das disputas normais de criança, ficou esquecida. Eles brigaram outras vezes, competiram por tudo, amigos e adversários, primos e irmãos. Agora, no meio da queda, Marcelo queria que o primo o tivesse visto correndo da polícia; primeiro pela avenida, entre os carros; depois, já dentro da favela, entre as casas, subindo muros, por cima das lajes. Era o gato, como gostava de dizer, quando criança, sempre caindo de pé e ileso fosse das árvores, fosse dos muros.

Gato. Foi esse o bicho que viu no rabisco aleatório que fez na aula de desenho. Depois, treinou várias vezes em casa escondido, ensaiou o gesto para parecer o mais espontâneo possível e fez dele sua assinatura. Primeiro nos desenhos da escola, depois nos muros da rua. Todo mundo pichava naquela época. Ele e o primo se uniam naquela vontade de marcar territórios. Iam cada vez mais longe pelo bairro. E fora dele também. Naquela aventura de ultrapassar limites, ampliar horizontes, Marcelo foi além. Dos rabiscos frenéticos, das marcas da galera, passou a se aventurar em outros desenhos. E mais que as pernas ágeis e compridas, descobriu que as mãos eram capazes de fazer quase tudo que imaginava. As imagens na sua cabeça aos poucos iam passando para os muros na tinta negra do mais barato spray. Eram apenas as formas. Vieram, a seguir, as cores, multiplicadas rapidamente. Uma explosão de cores, diria o menino, ainda desacostumado de criar imagens com palavras. Como os desenhos falavam mais, ele não insistia nas palavras. Foi assim, em silêncio, que respondeu uma tarde quando o primo o chamou para mais um desafio de pichação.

— Vamos?

A mão de Marcelo apontou um olho inacabado em um muro. E para a próxima pergunta, nem mesmo um gesto.

— Vai ficar de mariquinha, é?

Eles se separaram.

Marcelo queria que o primo tivesse visto seu salto entre um prédio e outro, queria que tivesse visto o gato pichado naquele lugar tão difícil, os truques pra se livrar do segurança, o portão arrombado, a tinta negra sob as unhas, aquela prova de que não era veado.

— Homem tem tinta preta na mão. Nada de verdinho, vermelhinho, amarelinho.

Marcelo tinha medo de ser visto como menos homem do que era, mesmo que até já tivesse mostrado isso algumas vezes. Pegava mulher. Não era fácil, era tímido, mas a força do corpo e suas exigências empurravam o menino para frente. E tinha Rai.

— É um peixe?

O peixe estava visivelmente voando, havia nuvens embaixo para provar. Ele se entrelaçava com um pássaro que visivelmente estava dentro d’água, havia ondas em cima para provar. Eram muito coloridos e pareciam voltear um em torno do outro, asas e barbatanas se uniam passando suas cores de uma para outra. Entre tantas, havia apenas um filamento azul que saía da cabeça do peixe, abraçava o pássaro e terminava formando a pena mais longa de sua cauda. Foi o que mais chamou a atenção da menina.

— Que azul lindo. Nunca vi um azul assim. Chega dói.

Marcelo tinha misturado vários tons até chegar àquele azul. Ele se orgulhava do que tinha conseguido.

— Eu chamo de azucrinante.

Ela riu. Para ele, azucrinante era algo incrível, legal. Ele não sabia que os dicionários pensam diferente. Ela sequer pensou. Seu olhar estava além das palavras, além da explosão de cores, além da magreza juvenil e morena dele. As meninas chegam primeiro a um entendimento do que querem e de como devem fazer para ter. Ela sorriu admirada.

— É tão bonito!

Rai era linda. De um beleza que todos sabiam. Tiago sabia.

Ela se intrometeu entre os dois como se alguém usasse uma ferramenta de metal para alargar uma pequena rachadura. No começo, sem se dar conta, mas logo percebeu, pelo jeito esquivo de Tiago, que havia ali um desejo. Ela não resistia à tentação de atiçar o rapaz e rejeitar. Tinha o gozo de, estando com um, saber que o outro de longe invejava.

Marcelo não percebia. Não via relação entre a nova namorada e o primo. Sentia apenas o afastamento, e se ressentia de Tiago não ter nenhuma admiração pelo que ele fazia. Nenhum elogio de quem quer que fosse fazia o primo sentir como uma vitória de Marcelo. A marca do gato pequena embaixo de uma paisagem colorida não significa nada.

— Melhor é quem vai mais longe, mais alto. Isso é que é coisa de homem.

A voz do primo gritava nos ouvidos de Marcelo durante a queda. A mesma voz que ouvia enquanto invadia aquele prédio. No silêncio que fazia para enganar o segurança, a voz estava lá dentro, alta. E mesmo depois, na fuga — seguranças, polícia, carros —, nada era mais alto do que ouvir o primo gritando a superioridade de quem vai mais alto, de quem coloca sua marca no lugar mais difícil. Ele correu pela ruas, pela favela, por sobre as lajes das casas. Sabia que por ali chegaria em casa facilmente. Tantas vezes os dois tinham feito aquele caminho. Da última laje viu a janela do quarto aberta. Eles moravam numa encosta, uma casa em cima de outras três casas, um prédio construído aos poucos, uma invasão para o alto, que outro lugar não havia por ali. Tanta gente. Dormiam no mesmo quarto, juntos e, agora, afastados, um afastamento que doía em Marcelo.

A janela estava aberta. Era só pular e estaria salvo. Pulou. Tiago estava lá dentro. Ele sorria. Marcelo, como um reflexo do primo, sorriu satisfeito. Eles se aproximavam, juntos de novo, Marcelo vitorioso e aceito pelo primo.

Então, Tiago, como um Deus ao contrário, sem nem mesmo abrir uma porta antes, fechou a janela.

 

Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-Ba e mora em Salvador. Publicou os livros “Pequeno inventário das ausências” (Poesia, Prêmio Fundação Casa de Jorge Amado, 2001); “3 vestidos e meu corpo nu” (Contos, P55 Edições, 2009), “Eros resoluto” (Contos, P55 Edições, 2010),  “Cada dia sobre a terra” (Contos, EPP Publicações e Publicidade, 2010), “Se tua mão te ofende” (Novela, P55 Edições, 2014),  “Arquivos de um corpo em viagem” (Poesia, Editora Mondrongo, 2015) e “A eternidade da maçã” (Contos, Ed. 7 Letras, 2016), vencedor do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia de 2016.  

 

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2 Comentários

  1. Adorei…

  2. Conto de um grande escritor que você é, Marcus. Parabéns!

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