Dedos de Prosa III

Anchieta Mendes

 

Pintura: Cláudia R. Sampaio

 

QUANDO A CHUVA MOLHA A ALMA

 

Mercedes viu o pai, naquele dia, chegar bêbado. O rosto avermelhado, a voz travada. Quando bom, as palavras saíam com dificuldades. Poucos entendiam os significados. Lá fora o céu empalideceu. O vento varria gravetos e as árvores envergavam. As galinhas corriam no terreiro em algazarras. O céu escurecia rapidamente. Sua irmã Francisca chegou da vizinha resfolegante. “Cuida! Vamos fechar as janelas. A chuva está vindo como nunca”.  O pai deitou-se no chão frio como de costume. Resmungou qualquer coisa indecifrável. Não se interessou pela chuva a vir, apesar de sempre esperar por ela. As outras irmãs fecharam-se no quarto. Helena precisou de ajuda de Isabel, a irmã mais próxima.

Mercedes ajudou as irmãs o mais rápido possível. Correu à janela para ver a chuva. Não tinha chegado, mas o cheiro estava no ar. Olhava para a estrada à distância. Olhava para o pai na sala deitado no chão, a não sonhar com a chuva. E ele não a viria tão torrente, tão forte capaz de deixá-los quase à deriva. A mãe deixou-o morto e não precisou dele para buscar formas de não se envolverem no dilúvio. Por mais que sentisse dó dele, Mercedes sabia, no íntimo, a cada dia o desprezo aumentar. Era um pai doutro mundo. Era um pai presente-ausente. Era um pai de lascar. Olhava agora para a mãe. Corpo esquálido, de ossos do peito a estufarem-se. Os olhos quase não cabiam nos côncavos. A pele presa aos ossos e aos nervos e às juntas. Pele ressequida e sugada. As pernas finas a formarem dois arcos. Os cabelos tingidos aqui e ali de branco e ruins de serem penteados. Ficava a se pensar como aquela mulher pariu cinco filhas com aquele corpo que mal se firmava em pé. Às vezes temia em a mãe se desmoronar e os ossos se espalharem pelo chão. Era uma mulher de aparência fraca, mas forte na luta, na lida, nas resoluções. Pecava pelo amor desvairado, pela inocência no pensar e no agir pelo marido longínquo. Não entendia a mãe, ou se fazia por não entender. Por que aquele amor de um só? Por que sofrer tanto por um homem? Procriação? Carne? Carne era só o que ele trazia na feira do mês, e só. O resto as mulheres da casa tratavam de conseguir às duras penas.

Ela chegou, aos poucos, perpendicular vindo da estrada, subir o alto, banhar as podas das árvores, tingir as cores encardidas das casas. Mercedes viu a chuva vir de tal forma branda para depois forte. Lembrou de Paulo, amigo de Francisca e que se tornou amigo de todas. Lembrou porque ele era como a chuva, apesar de sempre tardia, passageira. Vinha sempre, saltitante, mas logo ia a deixar reverberação no ar. Mas logo esqueceu da imagem fugidia daquele que seria o ponto cego da visão. Deixou-se a ver a chuva a tamborilar nas telhas, aos poucos e logo constante. Não quis ouvir as irmãs no quarto a rirem. A mãe chegou-se perto e as duas ficaram mudas, pelo vão da janela, a ver aquela coisa rara. Cada uma ao seu modo.  As irmãs no quarto, agora a rirem. Quis rir também, e assim o fez, de forma suave, a receber a chuva do caju. E nunca soube o porquê do caju. Naquelas bandas a fruta era rara, quase a não existir.

Foram assim serenas, controláveis, no princípio, que as águas de setembro molharam as lembranças de Mercedes. O pai deitado no chão da sala, bêbado. A mãe sem tantas palavras, mas nos olhos o brilho a espelhar os pingos d´água. As irmãs, no início, a rirem de qualquer coisa. Mas nem tudo foi assim. Tudo foi aos poucos, como qualquer chuva a banhar aquelas terras gris. Choveu. Choveu como nunca. Na proporção que as águas caíam, o cenário mudava. A casa edificada no alto parecia estar segura de provável inundação. Mas o que se veria nas próximas horas foi de causar medo. Os risos das meninas se foram, aos poucos.

Quando a noite chegou, e o pai ainda bêbado e jogado, a chuva veio junto. A luz dos postes era pouca para se enxergar o que acontecia lá embaixo. O caminho a dar na casa, em um dos lados, havia declive acentuado. Existia um vão convexo. Uma espécie de açude sem água. Na beira da estrada, um bar. No início da chuva, alguns bêbados celebravam em brados. Ouviam-se copos a se quebrarem e garrafas tilintarem. Mas depois apenas a chuva. Foi quando a luz se foi. Os risos das meninas também. O pai naufragado no álcool. A mãe, agora, preocupada. Todas trataram de buscar as lamparinas, as velas, algo para as iluminarem. As telhas cantavam, dançavam à chuva, explodiam em melodias agudas. Sentiam-se os respingos por entre elas, como se aspergissem água benta naquelas pecadoras. O pai não sentia, estava morto, e não era novidade morrer a cada dia. A chuva a aumentar.  Os olhos das irmãs, apesar de Francisca ser a mais velha, a expressarem medo.

As casas vizinhas, distantes, Mercedes tentava ver as frouxas luzes pelos rasgos das portas. Eram luzes disformes. Os grossos pingos da chuva turvavam a visão.  Não conseguia enxergar o que, pela manhã, seria o mar lá embaixo e sem condições de não ir a lugar nenhum.

Mas a noite ainda demoraria a chegar ao seu fim. A casa, com suas três portas, delimitava os dois mundos: o interior e o exterior inundado. Mercedes temeu o pior, mas segurou-se. Não tinha presenciado aguaceiro como aquele, apesar de não ver, mas sentia. Os respingos de entre telhas a banhavam como gotas de orvalhos exagerados. Banhavam a esperança de dias melhores, como estágio para que as futuras plantações vingassem. Lembrou, então, de ter deixado a escola, não porque quis, mas pela imposição do pai. Era preciso limpar os matos a engolirem o feijão. Era preciso encher os baldes de água da cisterna. Era preciso encher-se de tantas tarefas para esquecer a dor de ter deixado de estudar. Por isso cruzava com o pai no dia a dia como a um estranho nos caminhos empoeirados daquele terrível lugar.

A escola era do outro lado da estrada. Paralelo à estrada, o rio. Depois do rio a escola. Para chegar lá, muitas vezes, precisou nadar, com as roupas, a sacola com o livro e o caderno e o braço a puxar a água. Quando chegava à margem, esperava Francisca para se ajudarem a se vestir. Os meninos iam pelo outro lado, distantes. E esses meninos, apesar de próximos naquela geografia de Magdaluz, a cada dia, se tornavam mais distantes. Muito mais tarde, com a idade avançada, e as durezas da vida, não os via com os seus próprios olhos e nem os sentia com os seus restantes de sentidos.

Era bom estar sentada na cadeira da escola, apesar de péssima, mas era o que tinha. A manhã a passar a rabiscar cadernos, a juntar palavras naquele único livro, não era ruim. As duas filas das carteiras, de um lado as meninas e do outro os meninos, mostravam as divisões entre eles. A professora era rigorosa, e mesmo no intervalo não as deixavam ir longe, esconderem-se. Os óculos da professora deviam ter graus demais para enxergar tão longe. A sua amiga mais íntima, Eufrásia, de cabelos louros, pele branca como a neve, aparentava inocência, mas era uma diaba por dentro. Os quinze anos das duas emparelhavam entendimento, embora Mercedes se resguardasse nos ímpetos. Já Francisca não era bem assim. Por ter um ano a mais das duas, envolvia-se com Eufrásia em peripécias demais para a época. As trocas de bilhetes eram constantes e os assuntos, claro, eram sobre os meninos. Mercedes era quem acobertava os encontros delas com eles quando dos intervalos. Estava sempre atenta a todos os passos da professora e dos seus óculos longitudinais. Inventava sons, batia palmas sem ver para quê, cantava o que não sabia cantar, gargalhava por nada. Tudo para avisar às meninas das investidas da professora. Depois em casa, Francisca contava tudo, mas jurava de pés juntos, que tudo não passava de beijos, só beijos. Conte-nos, dizia Mercedes, os detalhes. Francisca minuciava cada ação e reação. Helena ouvia e imaginava tudo. Como as demais também. No final cada irmã guardava pra si aquele segredo como algo mais precioso do mundo.

Eufrásia não deixou a escola. Eufrásia casou, teve filhos e se separou do marido para viver com outro, e depois com outro e, hoje, não se sabe do paradeiro dela. Mercedes riu, enquanto sentia a chuva naquela escuridão de lá de fora. Dentro de casa, as luzes bruxuleantes dos candeeiros tornavam as irmãs e a mãe imagens fantasmagóricas. Quando elas se moviam, as sombras nas paredes se encontravam como a se engalfinharem.

Na mistura dos sons nos telhados, dos chinelos pela casa, deixava Mercedes entregue a devaneios e, ao mesmo tempo, atenta a tudo. Achava os movimentos da casa o seu mundo mais profundo. A chuva trazia, além dos fantasmas nas paredes, os vultos do passado. Na proporção em que a chuva se fincava na noite, a casa enchia-se dos parentescos vultos, vizinhos e figuras desfiguradas. Mercedes recebeu todos eles, entre desconfiada e deslumbrada. A tia Andaluzia gostava de falar alto, e foi logo expondo o seu ponto de vista em relação à situação da região: “a seca me dá agonia por ter que comer carne seca e farinha. Não tenho nada contra o gosto, mas minhas dentaduras não aguentam”.  Tratava logo em tirar do bolso do vestido o naco de fumo e a palha de milho. Insumos para o cigarro de cheiro maldito. Não se importava para o torcer de narizes dos outros. “retirem-se os incomodados. O terreiro é o local ideal para as bestas”. E continuava a falar, sempre se referenciando à dona da casa. A cada palavra a sair da boca, enxovalhada de fumo e fumaça, o olho direito fechava. Era a forma viciosa, um tique nervoso a deixar a outra pessoa a querer lhe imitar. Pelo olho fechado a fumaça soltava-se e enuviava aquele sentido incomum. Os gestos das mãos em jogar para uma e outra o cigarro de palha mordiscado era outro gesto intranquilo. Tia Andaluzia não era normal. Espalhafatosa, apesar do corpo magro, ao chegar num ambiente tomava conta de tudo. Os outros eram os outros.  Foi assim que ela entrou na casa, já por volta da madrugada, encharcada da chuva. Foi assim, também, em outros dias quando a chuva veio tão forte que não quis voltar de onde veio. “O marido se ajeita”. Ficou uma semana com a irmã de roupa única. As de baixo a irmã precisou comprar. O cunhado foi aos solavancos, no lombo do jumento, a resmungar injúrias para si, a comprar no comércio calcinhas para Tia Andaluzia. As filhas, naquele dia, não aguentaram de tanto rir. Queriam ver a encomenda, o tipo. Mas o pai sob protestos aos quatro ventos enviou a mercadoria pela vizinha. Chegou horas depois trazido pelo animal afogado na cachaça.

Outra personagem, a se livrar da chuva, foi Tio Nonato. Ao entrar trouxe na aparência, de nota, o rente cabelo à brilhantina. O cuidado com aquela indumentária era de causar comentários. Anexado pelo bigode fino, sempre penteado. Ambos os toques negros pela tinta rejuvenescedora. Trazia no bolso o pente fino, guardado como relíquia, parte do corpo, parte da vida. Juntados os irmãos sob o aguaceiro e aos olhos e mente de Mercedes, a noite arrastou-se diferente. Tio Nonato comentou sobre o cunhado caído para depois deixá-lo largado igual a todos. Os irmãos enfiaram-se na cozinha e beberam garrafas de café ao gosto das palavras e memórias elucidadas. Mercedes ficou no canto da porta a ouvir aquelas vozes misturadas do além e do presente.

Tio Nonato também ficou pós-chuva. Deixou a mulher na cidade distante, e acompanhou a Tia Andaluzia em visita à irmã. Foi num período de dois dias que Tio Nonato revelou-se doído pela paixão do passado. Em outras visitas à cidade de Magdaluz, há muito tempo, conheceu uma mulher. Trovadora, audaciosa, bonita, indecifrável por fim. Amor, paixão, atração, não se sabe. O que se sabe foi o rapto da mulher casada, notícia afora. A esposa de Tio Nonato soube e aguentou e chamou a amante de rapariga, praguejou, desejou morrer, serenou. Suportou o tempo de seis meses em que o aventureiro e apaixonado cabra desnudou-se das suas responsabilidades de marido. O filho de uma égua fugiu como o diabo foge da cruz. Fugiu como quem buscava nas carnes da outra o que não encontrava em casa. Voltou tempos depois ao largar a mundana quando abusou. Entregou de volta ao marido como objeto usado, e aquele traído a recebeu. E agora, no encharque da chuva, Tio Nonato mergulhou-se na cachaça a lembrar das aventuras e de querer saber do paradeiro da aventureira.

Foi assim a noite toda a lembrança, a memória a misturar-se com a realidade. As vozes das irmãs com a da mãe fizeram com que Mercedes confundisse o real do imaginário. Porém não deu para confundir quando as telhas dançaram. As telhas não suportaram o soprar do vento. Muitas foram arrastadas. Buracos se abriram no telhado. A chuva a continuar forte, tanto fora como dentro de casa, deixou a todas em pânico. O pai jogado e agora molhado. Era preciso sacudi-lo. Mas antes as irmãs e a mãe trataram de aparar o aguaceiro; cobrir os parcos móveis; de vassouras e rodos a puxar o excesso. O pai era um móvel-imóvel que podia inundar-se, por enquanto. Todas se molharam. O cuidado estava também em Helena. O cuidado estava nas louças e na última feira do mês. Helena se salvou, mas a feira foi de porta afora. A mistura aguou. A mãe quis ir atrás, mas foi impedida pelas filhas. Todas as roupas molhadas, grande parte dos móveis. Quando o pai foi arrastado pela leveza do álcool, a mãe atirou-se para impedi-lo. Foi então que as irmãs notaram o grande amor da mãe pelo pai. E nessa divisão de água entre os pais e as filhas, Mercedes tornou-se pioneira no estilo de vida que iria perdurar por todos os dias vindouros. Mesmo Helena com suas dificuldades, sentiu o quanto aquele episódio as marcaria para sempre.

 

Anchieta Mendes, natural de Juazeiro do Norte-CE, é escritor com prêmios literários e contos publicados em várias antologias. É autor de “Valados de giz” (Romance), “Alquimia” (Romance – Multifoco) e “Bicho Metropolitano” (Contos – Penalux).

 

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