Dedos de Prosa III

Eleonora Marino Duarte

 

 

Desenho: Luiza Maciel Nogueira

 

 

O Guardião

 

Habitava um ódio sem limites e um rancor de dar veneno ao ar, não havia quem lhe sensibilizasse além do desprezo, era de fel a saliva que expelia para manchar a calçada, na desova diária de seu cuspe. Aliás, tinha um prazer enorme ao imaginar alguma mulher, das que nunca lhe olharia a cara, pisar seu cuspe e levar a sentença de sua escarrada para a casa.

Trabalhava bem em frente a um irritante chafariz, uma grande farmácia e um lugar de servir café. Não gostava de lugar nenhum, gostava mesmo era do ponto de bicho, no beco, onde apostava na sorte de ter alguma sorte para poder se livrar de viver junto aos miseráveis.

Conhecia o ser humano de dentro para fora, de trás para frente, acreditava e assim gostava de dizer quando lhe censuravam os mais chocados pelos seus comentários. Não tinha nada que lhe convencesse da possibilidade de existir gente que prestasse. Chegava mais cedo ao trabalho só para poder ver o movimento de pedestres apressados e ir fazendo as histórias daquelas vidas sujas em sua cabeça. Os que passavam todos os dias eram vítimas de crueldades no julgamento, sem nenhum pudor ou trégua, fosse adulto ou uma simples criança choramingando. Todos eram, no fundo, no fundo, gentinha.

Em um dia inesperado, depois de já haver visto todo o tipo de gente ruim, apareceu o pior ser humano de que ele já teve notícias: Francisca Martins! Dona de um andar glorioso em sensualidade inocente, deixava claro o grande desprezo que ela tinha pelos outros, ao levar os quadris de uma lado a outro, como um pêndulo que faz hipnotizar quem para ele olhou por mais de uns segundos… Vestia-se de roupas humildes para disfarçar alguma coisa, com toda a certeza! Dizem que era solteira e que jamais fora envolvida em nenhum tipo de escândalo ou comportamento mais ousado, quando trabalhou no bairro vizinho. Mas ele, com sua habilidade incomparável para detectar porcaria, percebeu na primeira hora que se tratava de uma farsa! Decidiu que iria dedicar algumas de suas análises mais profundas a ela, a tal Chiquinha…

Ia juntando os fatos à medida que convivia na mesma atmosfera que a moça. Os porteiros dos outros prédios diziam que se tratava de uma moça bonita vinda do Norte e chegaram a demonstrar certa queda pelo sorriso brejeiro na fala arrastada da mulherzinha. Ele não! Manteve-se digno de seus princípios e castigava-a com a língua, sempre que havia oportunidade.

Trabalhava há 25 anos no mesmo edifício e jamais havia sido atingido por uma energia tão maléfica quanto a da moça. Propositalmente, ela adquirira o hábito de ser gentil com toda a população do quarteirão, as velhas beatas achavam que ela era abençoada, os homens a queriam proteger, as crianças sorriam frouxo ao seu toque. Se continuasse assim, em breve ela acabaria levando para a lama a rua inteira… Pensava ele.

Desde cedo ele decidira não se casar, era uma grande bobagem o casamento, jamais dormiria tranquilo ao lado de alguém que poderia queimar-lhe com água fervente ou cortar-lhe o sexo com uma tesoura. Ele sabia do que as mulheres eram capazes, ouvia com atenção a conversa das empregadinhas, sabia das mandingas e pragas que elas distribuíam quando contrariadas. Entretanto, inexplicavelmente, a cobra maldita, Francisca Martins, lhe perturbava o sono com aquele encantamento do maligno, aquele véu de bondade, aquela promessa de prazer, aquilo tudo que faz parte da caixa de truques do maldito, o sibilar da serpente com o qual devemos sempre nos preocupar quando lutamos contra as forças do mal.

Foi em um dia de feriado que ele resolveu dar cabo ao tormento. Acordou um pouco antes do relógio, mas esperou pelo despertador. Detestava quebrar rotina. Barbeou-se e reparou novas marcas pelo rosto. Gostava das rugas. Combinara com um amigo que, se alguém perguntasse, para todos os efeitos, estaria com ele durante aquela manhã.

Morava Francisca em uma espécie de pensão para moças, assim como fazem as prostitutas, obviamente. Não era muito difícil conseguir entrar pela porta da frente, principalmente para alguém com as habilidades de porteiro. Subiu as escadas estreitas e fedorentas do cortiço, deparou-se com uma senhora sem importância. Não tardou a achar a porta da devassa, havia nela uma foto de padre Cícero, uma clara afronta ao padroeiro. Bateu devagar e a moça abriu. Nos olhos de Francisca um evidente espanto por ver aquele homem ali, parado. Para ele, uma inexplicável inércia diante dos olhos da moça. De repente ela sorriu e foi como se o diabo cavasse um abismo em seu peito. A comoção que o gesto lhe causou transformou o dia em noite, a vida em morte, o sangue em gelo. Saiu correndo imensidão afora.

Não tornou a ser visto no trabalho, nem em casa, nem no beco do bicho. Dizem que virou uma espécie de profeta mendigo no centro da cidade, que canta salmos em uma língua estranha e alerta as pessoas sobre a doçura do demônio.

(Eleonora Marino Duarte mora no arquipélago dos Açores, em Portugal. Nasceu na cidade Serrana de Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro. Aos 12 anos, mudou-se para a Ilha do Governador e no mesmo ano ingressou como atriz no mais antigo grupo de teatro em atividade da cidade do Rio de Janeiro, o G.A.T.I.G., fazendo parte da companhia por vinte anos. Formou-se em Alta Gastronomia pela UNIRIO. Em 2005, criou o pseudónimo Betina Moraes. Publica seu trabalho como escritora na Internet mantendo o Blog Versos & Ideias e mais outros sete de sua autoria. Participa do Blog coletivo Falsidade Ideológica)

 

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16 Comentários

  1. O desenho de Luíza Maciel Nogueira ficou perfeito aqui!

    Gostei muito.

    Saudações!

  2. Também gostei muito Eleonora não só do conjunto de textos do blog como particularmente da sua narrativa. Espero que os sensatos não ouçam esse profeta e se deixem seduzir pela doçura do demônio.
    Abr.,

  3. Um conto cujo final não se situa na última frase, na última palavra, não para no último ponto, continua a sua história para um tempo mais profundo onde se funda algo que vai, pode ir, para além do mundo. Poderia ficar colega do porteiro, aluado, seria o certo! Decerto o motivo o devo a ter gostado “por demais” de ter lido, sem encontrar um só entrave à leitura. Se havia alguma casca de banana, devo ter caído e batido com a cabeça, pois não a vi nem percebi ter caído. Caí sim, na tentação de comentar. Resulta impossível dizer o quanto agradou, deu para tentar. Beijo

  4. que deleite os textos da Eleonora… amooo!

  5. Doce demônio que consome a pureza de nossos dedos inocentes…

    O texto está uma Eleonora de arrasar!

    E o desenho da Luiza com o movimento que essa Eleonora de arrasar causa por onde passa, pensa, escreve.

    beijoss :)

    Lelena

  6. Lola,

    Se fosse Exu-de-Lei, de tão resmungão este Guardião seria aposentado. Pode crer.

    Um beijo.

  7. José Carlos Bastos Sant Anna
    Vamos torcer para que o “profeta” não contamine a população!!!

    Muito obrigada pela leitura e comentário.

    abraço!

  8. Francisco,

    tentou e conseguiu, como sempre, me deixar feliz com a sua leitura, presença e comentário. Obrigada, poeta!!! :)
    Aliás, Muitíssimo obrigada!!!!

    Um Beijo.

  9. Catharina,

    que deleite a Catharina! Amoooooo

    Obrigada, musa! Nem imagina o quanto fico feliz em ter você comigo!!!!

    beijo!

  10. Lelena Terra,

    só posso lhe agradecer muito, muito, muito: Obrigada!!!

    Mas o que eu gostaria mesmo, se tivesse hipótese de você ver, era me levantar da cadeira, ir em sua direção e fazer uma reverência, igualzinho aquelas que fazemos quando encontramos a realeza, com direito a inclinação do tronco para a frente.;)

    Sou sua fã!!!! :)

    obrigada pela leitura,comentário e presença.

    um beijo imenso!!!

  11. Marcelo,

    ah! Que alegria saber que você leu!!!!
    :)))))

    Obrigada pela presença, querido.

    Um beijo bem grande.

  12. Palmas entusiásticas e de pé!
    Já acompanho a literatura refinada e inteligente de Eleonora Marino Duarte, mas vê-la na Belezura de vossa revista, é gratificante!

    Moça, descreveste lindamente uma patologia associada ao comportamento de fobia, no caso do porteiro, fobia com relação aos indivíduos e acentuada neurose sexual, falando eu a grosso modo. Vista por dentro, toda a patologia é bizarra, tu conseguiste fazer-me solidarizar com o “paciente” e ver o lado da angustia comportamental no doente.

    Um beijinho.

  13. Não conhecia a sua prosa, Eleonora (se me permite chamá-la assim, nesse sincretismo entre Eleô e Nôra), exceto, é claro, a dos nossos papos virtuais. Gostei do conto, bem à altura da sua poesia. Epa, exagerei um pouco!

    Beijo

  14. C.C.,

    muito obrigada, pelo entusiamo e mais, muito mais, pela leitura!
    Seus acréscimos são importantes, é interação. ;)

    beijo.

  15. Tuca, a você tudo é permitido!

    O melhor é que, como fã, fico olhando os seus comentários e pensando, “ele disse isso mesmo?”, mas como pode? eu sou muito fã dele e ele leu o que eu escrevi!!!!

    Sempre fico a lhe dever agradecimentos, não sei se consigo fazer de forma a serem suficientes, mas tento: Obrigada, obrigada, obrigada…

    Um beijo, querido.

  16. A Chiquinha era uma flor, prendada, cuidadosa, gentil com só, aos porteiros de teatro como sou, sempre acolhedora prestou caricias, palavras e calor. Ah se eu tivesse a Chiquinha junto com as mulheres do Sabonete Araxá, com certeza estaria em Pasárgada sem licença para ir e sem vontade de voltar….. By Lola.. Carregue sua cruz, a escolha foi sua.

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