Dedos de Prosa II

Pedro Reis

 

Luciana Bignardi

Foto: Luciana Bignardi

 

Capítulo Ósseo

O travesseiro estofado de carpos e metacarpos tiritava ao movimento do crânio, me obrigando a levantar o tronco, insone. Como que por costume, viro os olhos, esperando que o breu me oferecesse alguma luz que fosse para ver o relógio a minha esquerda. O ponteiro menor permanecia entre os números 4 e 5, enquanto o maior, algo como no 36. O dos segundos, não havia, ou me despistava em sua velocidade. Esse dia haveria de ser uma segunda-feira, nada antes, nada após.

Sem olhar para o chão, evitando a vertigem, pouso os pés nas ossadas que encarpeteavam meu aposento. Ouço o estalar dos mais frágeis enquanto sacudia-os, cavando o chão por debaixo das mandíbulas a mordiscar meus tornozelos. Dou passadas firmes e lentas para não me ferir, e alcanço por fim a mesa. O relógio agora se atraiçoava atrás da nuca, e, como se não houvesse mesmo o ponteiro dos segundos, a engrenagem – podia jurar – não se ouvia.

O sono ainda ofuscava a fome daquele dia ainda não nascido, mas, sem acender as luzes, tateio as tíbias e rádios amontoados na altura de minhas canelas, à procura de algo com que ocupar os dentes. Encontro um fêmur levemente poroso e chupo um restante de cartilagem que se desprendia de sua extremidade.

Abri a primeira gaveta à direita e iniciei a checagem dos relatórios da noite anterior. Era um sem número de casualidades, anulações, aniquilações, espancamentos, mutilações, depredações e mais um tanto de hipotermias, náuseas, vômitos, tremores, cefaleias, mal estar, cansaços, dores musculares, diarreias e outros sintomas inespecíficos a preencher páginas e páginas lidas com um desconforto causado por aquela restolhada que assomava à minha cintura, me perfurando o tecido das calças, beliscando as coxas.

No intuito de libertar minhas pernas do acúmulo de escápulas, quase derrubo minha caneca de leite deitada à mesa. Era uma caneca longa, resistente e impecável, feita com um tipo de cerâmica incomum. Naquela segunda-feira, ela me era perfeita.

Já não sinto mais meus pés. Afogados naqueles restos extintos, não consegui movê-los e nem imaginar-lhes a situação. Minha cama certamente foi tomada pelo ajuntamento que me anavalhava as axilas, tilintando entre si ao mais leve movimento. Salvei os arquivos dentro das gavetas antes que estes fossem também engolidos, e levantei da mesa a inseparável caneca, prontificado a dar o último gole.

Com muita dificuldade sacrifiquei meu queixo e orelhas aos arranhões dos xifoides e sacros que me feriam o pescoço, e olhei novamente para o relógio escondido na bruma. O ponteiro menor, o das horas, se encontrava entre o 4º e o 5º número, enquanto o dos minutos era afogado por fíbulas, talos e mediais. Tive de cuspir alguns trapezoides para libertar minha boca ao derradeiro gole que me descia aos lábios. Com um rápido movimento dos dedos, pude ao menos limpar meus bigodes. A cor do leite se camuflava na cerração, enquanto me queimava a língua. Era negra, e tinha gosto de cinzas.

***

 

Matéria Assombrada

Acordo sem abrir os olhos. Aquela mão que me sobrevoa a testa e os cabelos tenta desviar-me do sonho anterior. Há como resgatá-lo, mantendo os olhos fechados. De uma carícia tão leve acima das sobrancelhas, não poderia sequer culpá-la, pois há anos não sonho, ou não lembro. Sigo a contar. Tenho uma vantagem em relação a minutos atrás, enquanto dormia. Meio desperto, acalentado por mãos pacientes, atento com clareza à história que se passava em minha cabeça, e posso controlá-la, controlar-me, com cuidado mover cada cor e gesto.

Havia uma ilha, cuja sinuosidade da costa se esticava de um lado a outro sem ceder à sua curvatura de contornos marítimos comuns às ilhas. E mesmo eu, ali pela primeira vez, a sabia ilha, talvez mais que ela. Sabia de sua cabeleira de folhas imitando com o vento o sussurro do mar, desajeitada, e que de seu topo pendiam pessoas, de lá nativos milenares. E olhando em direção a ela, com sua folhagem, com seus galhos colidindo entre si no balanço constante, guerreando espaço no universo acima da areia, tão úteis contra as chuvas, vejo que não rebatem a luz. Uma floresta espessa, mas tão clara quanto o litoral, refratava perfeitamente o sol. Sobre as árvores, não havia sombra.

Lembro-me intruso nesta ilha. Sim, mas não hostil, nem hostilizado pelos nativos. Quando, há cinquent’anos, cheguei aqui, vi do alto, despencando aos mil, os moradores daquele lugar. Aproximaram-se amigáveis, e de seus corpos, como que libertos do arco solar que acima clareava o dia em que cheguei, não possuíam também sombra alguma.

Mas talvez o mais interessante seja o modo como me olharam pela primeira vez. Seus olhos tinham uma cor chamuscada, não a cor baça dos cegos, mas uma queimada, fogueira morta, pela exposição perene durante o dia. Começavam a passear-me em volta, e contornavam cuidadosos a minha sombra indiferente. Uns mais corajosos chegavam muito perto dela, com os pés e as mãos e os olhos e as crianças, mas por medo não a tocavam. Alguns começaram a brincar com ela, pulavam de um lado a outro, enquanto eu ria. Vi alguns mais velhos reprimirem as brincadeiras, e seus olhos sem expressão se abriam inseguros. Minha sombra doía naqueles olhares.

Diferente das aventuras que li quando criança, não fui feito prisioneiro e muito menos fizeram festa pela minha presença. Puxado pelas duas mãos pelos nativos mais jovens, fui acolhido, sim, mas como um amigo mudado pelos anos, suficientemente distante para que qualquer tipo de rancor ou confiança se tivesse dissolvido no tempo. Para eles eu era um ser virgem, de natureza intocada. Eles me levaram por trilhas entrecruzadas na floresta, necessárias apesar da claridade que tonalizava de esmeralda reluzente o teto sobre nós.

Não havia palavras de agradecimento. Havia descoberto muito cedo que não havia palavra sequer por ali. Tive que adequar meus pensamentos aos gestos com os quais eles me envolviam durante os dias e as noites, enquanto as horas passavam, e eles passeavam a minha volta, numa ciranda lenta, comandada pelo sol, girando a minha sombra e consequentemente, eles. Queria falar para eles sobre o tempo, mas não pude.

Assustavam-se quando ela mudava de tamanho, se afinava e esticava quando o sol nascia ou se punha, e enfraquecia nas noites de lua. Pude jurar uma saudade naqueles olhos, olhando para ela. Via os mais velhos apontando os dedos para a sombra, explicando segredos para os mais novos de olhos curiosos. Perguntas curiosas sobre aqueles assuntos eram constantes, mas não conseguia tradução para os gestos que se seguiam, e permaneci ignorante àquelas histórias. Eu não tinha permissão de entrar nas moradas construídas nas alturas. Eles tinham medo de que minha sombra tocasse seus pertences, e pela primeira vez em vida tive de andar guiando minha sombra pelo tempo e pelo espaço da ilha.

Até o dia em que os mais velhos começaram a ficar sérios. Não frequentavam as histórias que eu gesticulava durante o dia, e começaram a acordar no meio da noite, sobressaltados por visões bizarras e escuras e incômodas. Não durou muito até eles chegarem a alguma resolução em relação a mim, e isto eu já esperava, dada a franqueza daquele povo.

Era final de tarde quando o grupo, representado pelo ancião de nome ingesticulável, iniciou diante de mim um complexo de movimentos, me explicando da forma mais clara e alentadora possível que eu precisava me desfazer da minha sombra. Dei um passo para trás, olhei para ela, para eles, para além das fronteiras de contornos marítimos. E com minhas mãos incipientes à comunicação dos assombrados, perguntei como poderia fazer o que eles me pediam.

Naquele mesmo instante, todos me guiaram até o litoral, de forma que minha sombra me seguia fina e enorme a minha frente, devido ao sol poente às nossas costas. Eles começaram um coro agudo e dissonante que se dissolveu em segundos nos meus ouvidos. O medo me ensurdeceu, meus pés se enterravam na areia, sem querer seguir em frente, a ponta da minha sombra quase a tocar a espuma branca daquele que a engoliria.

Eles colocaram a mão em meus ombros, me olharam enquanto cantavam e minhas lágrimas rolavam e meu peito doía e minhas pernas não mais me obedeciam, automáticas que estavam em direção ao mar. Minha sombra tocou as ondas fracas e calmas que forravam a areia molhada, dispersando os seus limites escuros no abismo. A metade dela já tinha seu destino para além das minhas reflexões, mas não sentia nada senão amor.

Quando senti a água fria nos calcanhares, já era noite, e afora o sopro das ondas e do coro eterno de meus companheiros, um coro que me espantava as memórias, vi centenas de olhos pálidos reluzirem em direção a mim. Todos eles me sorriam com os olhos, em círculo em volta do novo membro.

Mas em incertas manhãs, quando durmo com as marés, distante das árvores, tenho sonhos revestidos de saudade, e chego a sentir uma mão a me acariciar os cabelos, num gesto de calma e segurança. Se esta mão pertence a minha sombra antiga, nunca saberei. Sempre preferi manter os olhos fechados e a dúvida.

 

Pedro Reis (1987) mora atualmente em São Paulo. Lançou os contos Gorilas e As borboletas de meu pai pelo portal Cronópios, tendo participado também da Contologia, lançada pelo portal em 2012. Os contos Trancelim, Mosca Diuturna e Desejo você encontrará no periódico Diversos Afins. Com o conto Midas, entrou na Antologia de Literatura Fantástica, lançada pela Fliporto no final de 2012.

 

 

Clique para imprimir.

1 comentário

  1. Mais uma vez os contos de Pedro Reis deixam-me perplexos com a sua criatividade, ritmo galopante, profundo mergulho nas escuras águas do Eu solitário e desesperançado. Muito bons. Parabéns.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *