Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Era o Hotel Cambridge. Brasil. 2016.

 

No importante ensaio O Autor como Produtor, o grande filósofo Walter Benjamin sugeriu que a função política de uma obra não está na solidariedade de conteúdo desta com a luta de classes, mas na forma como a obra participa produtivamente dessa luta.

Desde seu início, o cinema teve na montagem sua fórmula de construção estética e política. Montagem sempre como arranjo sinestésico de termos heterogêneos, como tomadas de múltiplas perspectivas, e na relação com elementos estéticos de diferentes origens: teatro, música, fotografia, narrativa.

Em sua última obra, Era o Hotel Cambridge, a diretora Eliane Caffé conseguiu colocar na ordem do dia a importância do cinema como meio de expressão estético e político. Seu filme recupera a potência política cinematográfica da montagem num momento crucial da história de nosso país.

O filme acompanha a ocupação de um hotel no centro de São Paulo e a luta contra o despejo do movimento denominado Frente de Luta por Moradia (FLM).

Num certo sentido, Era o Hotel Cambridge, é quase uma releitura do fabuloso filme de Caffé Os Narradores de Javé, de 2004. Neste, os moradores de uma cidade no sertão (Javé) se reúnem para iniciar uma luta simbólica contra a remoção de suas casas devido à provável inundação de todo o vilarejo por causa da construção de uma usina hidrelétrica. Os moradores precisam narrar o fictício passado do vilarejo para que ele ganhe importância simbólica e se torne mais difícil removê-lo por seu “valor histórico”. As narrativas, relembradas e inventadas por seus moradores, trazem assim as diversas perspectivas que relativizam o conteúdo da memória coletiva pelo esboroamento da fronteira entre realidade histórica e ficção.

No filme mais recente, a história também se inicia com a reunião dos moradores da ocupação do hotel para receber a notícia do despejo que acontecerá em duas semanas. Mas eles não têm mais a alternativa de estabelecer narrativas para ressaltar sua importância histórica. Trata-se de um hotel decadente e ao Poder já não interessam mais as histórias e as narrativas de um povo invisível. Trata-se então de uma luta de outro registro, mais propriamente audiovisual, para ganhar visibilidade e apoio da sociedade. Pois, só lhes resta então resistir e apelar para um judiciário parcial e cúmplice dos despejos.

Cena de Era o Hotel Cambridge / Foto: divulgação

O filme é a história da luta do movimento de moradia para permanecer na ocupação. Essa luta é acompanhada por dentro do movimento. Mas, exatamente como em Os narradores de Javé, há sempre uma grande ambiguidade sobre as fronteiras entre o documentário e a ficção, entre o registro e a invenção. Como dizem a diretora Eliane e sua irmã Carla Caffé, diretora de arte, trata-se de filmar uma zona de conflito. E o primeiro conflito aqui é entre a realidade e a ficção.

Nesse aspecto, é totalmente feliz a escolha da protagonista, Carmen Silva, que é efetivamente uma líder do movimento de moradia em São Paulo, mas também é a personagem principal desse filme. Os espectadores acompanham de perto as agruras de uma verdadeira líder de movimento: ao mesmo tempo afetiva e enérgica, e dura quando deve ser dura. Essa dureza mostra que todo movimento político precisa de organização: “a ordem do sistema é a nossa desordem, e nossa ordem é a desordem do sistema”, diz a líder. Em outra cena, as câmeras registram seu choro de cansaço por se dedicar inteiramente a essa luta e por não ser capaz de cuidar de sua própria vida particular. Uma colega do movimento a consola dizendo que sem ela o movimento não seria capaz de prosseguir. Para o espectador fica a dúvida se suas lágrimas são “reais” ou “montadas”.

A protagonista Carmen Silva (telefone) / Foto: divulgação

A montagem cinematográfica de Era o Hotel Cambridge é bastante complexa: não é apenas o encontro entre ficção e realidade ou entre documentário e cinema. É uma montagem de registros: é o filme ficcional, é o registro audiovisual de uma ocupação, e é também a participação na própria luta. Isso porque faz parte dela a aquisição de visibilidade e a busca do reconhecimento social de uma causa escrita na Constituição, a do direito à moradia. Assim, a montagem cinematográfica trabalha a reconfiguração da sensibilidade democrática: o olhar para uma zona de conflitos revela os impasses fundamentais da sociedade brasileira.

A mistura entre atores e não atores é essencial para esse efeito de embaralho de fronteiras do filme e para o concerto dessa montagem social e estética. Em particular, os atores Suely Franco e José Dumont (este também de Os Narradores de Javé) circulam entre os espaços da ficção e da realidade, entre a arte e a luta, como mediadores ou como curingas. Eles são responsáveis para trazer o sonho e a fantasia à dureza da luta. Em particular, a função ficcional do personagem Apolo, de José Dumont, é a de encenar uma peça teatral no meio da ocupação justamente para dar visibilidade à luta. Mais tarde essa apresentação será transformada em vídeo para ser distribuída nas redes sociais e angariar apoio da opinião pública. Trata-se, portanto, do efeito do “mise en abyme”, a peça dentro do filme, a obra dentro da obra.

José Dumont na pele de Apolo / Foto: divulgação

Os atores circulam e costuram as cenas entre uma multidão de deserdados. Há brasileiros misturados entre estrangeiros exilados, expulsos de suas terras: congoleses, palestinos, sírios, colombianos. Estes saíram de sociedades em situações extremas para tentar a vida num país que chegou também à crise social aguda e desesperançada.  Somos todos refugiados, diz uma das ativistas. Há os refugiados do exterior e os refugiados no próprio país. O Hotel Cambridge é um microcosmo da condição de exilado.

Os exilados reforçam a ambiguidade de fronteiras entre o registro documental e a invenção ficcional. Muitas vezes assistimos conversas entre eles e seus familiares em suas terras de origem através da internet. Essas conversas são sempre afetivamente carregadas, cheias de cobranças e desentendimentos. Aqueles que permanecem nos países ficam sobrecarregados com as exigências da sobrevivência mais elementar. Aqueles que partem parecem levar a esperança de uma vida melhor, mas isso nem sempre é verdade. Em muitos casos, sua situação está entre a coragem da partida, com todos os riscos envolvidos, e uma culpa insidiosa de quem não ficou para enfrentar as dificuldades junto a seus familiares. E há também uma complicação política: os que foram recebidos no Brasil não podem participar de manifestações políticas e, portanto, relutam em participar das ações coordenadas do movimento. No entanto, são responsáveis por uma verdadeira “heteroglossia”, a presença ruidosa de diferentes dialetos e formas heterogêneas de entendimento. Numa ocupação de outro prédio, registrada pelo filme, um palestino diz: “eu sempre vivi num território ocupado, agora sou eu que estou ocupando um território”.

Cena de Era o Hotel Cambridge / Foto: divulgação

E como numa obra em produção, o set do edifício ocupado serve também para as intervenções dos estudantes de arquitetura da Escola da Cidade em São Paulo e do escritório de desenho Vapor 324. As intervenções foram realizadas com o conceito de “arquitetura efêmera” para dar conta do caráter provisório de uma ocupação. Assim, esta se torna um reservatório de saberes técnicos e de modos de existência diversos. Eletricistas, advogados, enfermeiras, atores, técnicos de informática, estudantes de arquitetura e de cinema. Uma composição autêntica do “precariado” brasileiro em época de crise aguda e desemprego.

Era o Hotel Cambridge é, portanto, uma montagem audiovisual, ficcional e documental, e é uma composição entre obra de arte e movimento social. Os participantes da ocupação são levados a testemunhar para as câmeras a justiça de sua luta. O próprio filme de Eliane Caffé é um veículo para esse testemunho. Acabadas as filmagens, membros da equipe cinematográfica permaneceram como integrantes do movimento. Uma frase dita por Carmen Silva, e repetida como mantra por ela, é “a luta não é para vocês e sim com vocês”. A luta não é serviço social, tampouco distração. Esse recado vale tanto para os participantes como para os espectadores do filme, pois movimento social e cinema tornam-se uma coisa só. Diante da tela, os espectadores precisam decidir se estão dentro ou fora dessa luta, inscrita como direito constitucional de todos.

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.

 

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