Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Últimos dias em Havana (Ultimos dias en la Habana). Cuba. 2016.

 

 

Últimos dias em Havana é um drama cubano de 2016 dirigido pelo que é hoje considerado o mais importante diretor de Cuba, Fernando Pérez. O filme conta a história de Miguel (vivido por Patricio Wood) e Diego (Jorge Martinez), dois amigos de infância. Diego é um homossexual que sofre de aids e está fisicamente preso a uma cama. Miguel é aparentemente um homem assexuado que é obcecado por seu desejo de deixar a ilha e emigrar para os Estados Unidos. Ele espera conseguir o visto da embaixada americana para o qual vem se candidatando há algum tempo.

Sabemos que um evento de violência ocorreu na escola de juventude dos amigos, no qual Jorge foi vítima de discriminação e Miguel o teria protegido. Esse episódio selou a amizade entre os dois ao mesmo tempo que destinou Diego a uma vida de clandestina sexualidade. A história do filme se passa num momento em que Diego, deitado inválido sobre uma cama, tem a ajuda de Miguel para quase tudo, desde comida, remédio e banho. Diego confia em Miguel mais do que em sua família. A casa onde o casal de amigos mora pertence a Diego e a família deste teme que ela seja destinada em testamento a Miguel, uma possibilidade no direito da ilha socialista.

Últimos dias em Havana lembra imediatamente Morango e Chocolate (Fresa y Chocolate, 1994), de Tomás Gutierrez Alea, sobre história de Senel Paz, o maior sucesso de público da história do cinema cubano.  A referência é explícita: também aquele é um filme sobre a amizade entre dois homens, um deles homossexual. Justamente, as personagens gays de ambos os filmes têm o mesmo nome, Diego (e são interpretadas por atores de nome Jorge, Perrugoia e Martinez, respectivamente). No entanto, as personagens não homossexuais são bem diferentes, quase opostas. No filme de Alea, David é um jovem comprometido com a revolução que tem enorme preconceito contra os gays. No filme de Pérez, Miguel é um homem que sonha com a vida americana e considera a revolução socialista uma verdadeira catástrofe pessoal.

 

Cena do filme Últimos dias em Havana / Foto: divulgação

 

Em sua passagem pelo Brasil, Fernando Pérez admitiu a referência ao filme de Gutierrez Alea, porém disse que seu filme é um tributo a esse, considerado o maior diretor cubano, de quem foi assistente. Atualmente, Fernando ocupa a posição de destaque de seu mestre. No entanto, para o diretor ambos os filmes são muito diferentes, apesar do núcleo de história comum. Na verdade, não é uma questão tanto de referência quanto de diálogo. E num certo sentido, o filme de Pérez guarda um tom crítico em relação a Morango e Chocolate.

Toda obra de cinema, ou mesmo artística, de Cuba está marcada pelo estigma do documento. Se a presença e a persistência da revolução cubana permanecem incompreensíveis para muita gente, é através da arte que se procura explicar o mistério da longevidade da revolução, para o bem ou para o mal. Assim, há pessoas que se basearam no filme de Gutierrez Alea para criticar ou mesmo denunciar a suposta perseguição homofóbica na ilha caribenha. Morango e Chocolate não seria então uma obra de ficção, mas sim um testemunho do caráter homofóbico dos revolucionários, “representados” pela personagem de David.

Não adiantaria argumentar, no entanto, que o filme seja um drama ficcional ou que Gutierrez Alea foi um diretor que sempre apoiou a revolução, ou que o filme tenha sido financiado com dinheiro estatal cubano e que tenha passado, sem censura, nos principais cinemas da ilha, ou mesmo que a sorveteria Coppelia tenha se tornado um ponto turístico e que lá nunca falte justamente o sorvete de “fresa”. Tudo isso deveria matizar uma apressada leitura “realista” ou “documental” da obra. Morango e Chocolate é o que se chama, em teoria literária, de um filme “polifônico”, um filme de vozes e perspectivas. A crítica ao ranço preconceituoso, machista e homofóbico eventual de um guerrilheiro cubano é elemento narrativo do filme, mas também é ato de autorreflexão estética da própria revolução, que repensa seu significado através de uma obra de arte.

 

Foto: divulgação

 

Últimos dias em Havana retoma um diálogo que torna ainda mais complexa a questão da sexualidade na ilha caribenha. O Diego do filme de Fernando Pérez já não representa mais a antítese da revolução. Num certo sentido, ele está em paz com sua condição de cubano e com o regime socialista. Há, portanto, neste filme uma troca de papéis com sinais trocados: é Miguel, amigo e interlocutor de Diego, que não confia no regime. Mas Diego, por sua vez, não é exatamente uma pessoa conformada com a situação do regime burocrático que reprime ou cerceia sua sexualidade. Sua prisão são sua cama e sua doença, e sua luta é por manter vivas a libido e a delícia de viver, mesmo em seus “últimos dias”.

O que o filme põe em confronto não é mais o destino coletivo de uma nação socialista contra o livre exercício individual da sexualidade. De certo, a sexualidade de Diego precisou ser vivida de forma clandestina, mas ele sabe que tudo em Cuba se consegue sob a “vista grossa” do poder oficial. Tudo é vivido nas brechas entre as aparências oficiais do regime político e a realidade cotidiana das ruas. Assim, o que a narrativa do filme confronta não é mais o Estado contra o indivíduo, mas a aparência oficializada do governo pós-revolucionário e a urgência política da vida e dos afetos cuja existência se dá coletivamente. Agora é Miguel que, ao se individualizar em sua amargura e desejo de fuga, vive uma vida paralisada, cuja única esperança é receber uma aceitação da embaixada americana, enquanto Diego e outras personagens vivem mais plenamente seus desejos e suas sexualidades. Últimos Dias em Havana inverte assim a perspectiva de Morango e Chocolate: não é mais a revolta do indivíduo que assinala a verdade opressiva do regime coletivo. É a intensidade da vida coletiva que se “vira” em condições desfavoráveis e traz a verdade sobre a impotência existencial do indivíduo representado por Miguel. Embora não suporte o sistema político de Cuba, Miguel o representa muito mais do que Diego e seus amigos e familiares. Diego incorpora o afeto existencial e libidinal que é ausente do discurso oficial da burocracia no poder, no entanto, é a rigidez desse sistema que torna viável esta mesma corrente afetiva subterrânea, ao permitir que prossiga como se não existisse.

O filme de Fernando Pérez trabalha de maneira a tornar complexa a relação entre a aparência formal do regime político e a aparência estética cinematográfica. Se, no início, o filme parece aderir a uma estética folhetinesca de oposições fortemente marcadas entre os caracteres antagônicos de Diego e Miguel – o primeiro exuberante, porém imóvel, e o segundo afetivamente paralisado, porém circulante – esse antagonismo se torna menos trivial aos poucos, pois a amizade entre os dois está incluída nesta “política da vida” da qual Diego é portador. A entrada em cena de novas personagens como P3 (ou P4, vivido por Cristian Jesús Pérez) e Yusisleydis (Gabriela Ramos), a sobrinha de Diego, amplia o caleidoscópio atual da vida na ilha caribenha, trazendo à tela a vivacidade da geração contemporânea de jovens cubanos. Ambos, aliás, justamente não alimentam o sonho de emigrar e vivem no interior de um experimento social de sobrevivência à margem dos legados possíveis ou das promessas utópicas da revolução.

 

Foto: divulgação

 

A presença deles interrompe repentinamente a normalidade esquemática da relação entre Miguel e Diego, assim como interrompe a história do filme numa bifurcação do correr da narrativa cinematográfica. É com a entrada desses jovens que o filme ultrapassa o binômio quase-dialético da fórmula “morango e chocolate” para desviar a outros rumos estéticos. Formalmente, há dois elementos marcantes na construção cinemática. O primeiro está no uso da música diegética, interna ao enredo. Toda a trilha sonora do filme é ouvida no interior da própria história numa junção engenhosa entre narrativa ficcional e documento contextual. Assim, a belíssima canção cantarolada por Yusisleydis tem o aspecto simultaneamente de um momento lírico de fantasia, sendo no entanto extremamente realista, evitando o que seria um artificioso comentário sentimental do diretor e expressando inesperada erupção do real na trama. O mesmo para a canção Chupa Piruli que acontece num mercado de produtos de consumo de Havana. A cena joga com a ambiguidade de sua localização e parece ocorrer em uma espécie de Miami insólita localizada dentro da capital cubana. Essa canção não “comenta” de fora o enredo, mas emergindo por diegese da própria narrativa funciona como um comentário irônico que o filme faz das próprias expectativas do público.

E há, a partir de certo momento, o recurso brechtiano de distanciamento e estranheza provocado pela fala de Yusisleydis, que passa subitamente de personagem secundária à narradora da história. O filme então assume um aspecto fabuloso, porém ao mesmo tempo mais fortemente verdadeiro. Não é simplesmente o caso de dar “voz” ao povo cubano, pois Yusisleydis não “representa” os jovens da ilha. Ela só representa a ela própria. Sua fala tem o mesmo efeito da música diegética: emana do interior do dispositivo cinematográfico ficcional interpelando diretamente o espectador. O que importa é menos o que ela tem a dizer e mais o gesto de sua enunciação, a tomada da palavra. O que é exemplar não é sua mensagem, mas sim o gesto revolucionário de assumir a palavra sem intermediários.

Últimos dias em Havana parece um filme em paz com o regime socialista, porém não se pode acusá-lo de ser uma propaganda do Estado cubano, nem tampouco é uma obra dissidente. O filme não transmite a ideia de que a revolução está em seus últimos dias, mas também não está em seus momentos gloriosos. Se o filme indica que há algo novo nascendo é porque a revolução também sofre metamorfoses insuspeitas, entre a verdade da fábula e a gélida ilusão da realidade.

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.

 

 

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