Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Dois dias, uma noite. França/Bélgica/Itália. 2014.

 

Dois dias, uma noite

 

Dois dias, uma noite, dos diretores belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, conta a história de Sandra (vivida pela atriz Marion Cotillard), trabalhadora de um negócio fabril numa pequena cidade da Bélgica, que ao retornar de uma licença médica devida a um problema de depressão, de origem desconhecida, descobre que seus colegas de trabalho votaram pelo seu afastamento definitivo, em troca de trabalhar um pouco mais e receber um bônus de mil euros.   Sabendo que a votação teria sido aberta e que seus colegas foram pressionados pelo gerente, Sandra convence seu empregador a ter mais uma chance com uma nova votação, dessa vez secreta. Assim, ela teria um fim de semana para convencê-los a abrir mão do bônus e obter seu emprego de volta.

Com esta trama simples, como em geral ocorre em seus filmes, os irmãos Dardenne, como são conhecidos, alcançaram uma imediata empatia com o público. Dois dias, uma noite já é o maior sucesso comercial da dupla, com muitos méritos. Seguindo a habitual “câmera na mão” dos diretores, sempre focada na corporeidade de seus atores, os espectadores acompanhamos como num filme de suspense a trajetória de fôlego de Sandra, indo de casa em casa para, face a face com seus colegas, mostrar que já está disposta novamente e que precisa do emprego para garantir o ganha-pão de sua família. O problema é que seus colegas também precisam do dinheiro e se mostram pouco inclinados a abrir mão dele. Na verdade, além de uma suposta solidariedade de classe ou simplesmente de um sentimento de fraternidade, há poucas razões para que abram mão de seu bônus. Afinal, trabalharam alguns meses com um colega a menos e a rotina do trabalho não teria mudado muito, mostrando que a presença de Sandra talvez fosse supérflua…

Na atmosfera crua e fria, sem ornamentos estilísticos e estéticos (que lembra muito, em sua sobriedade os filmes da maior referência dos diretores, o cineasta Robert Bresson, sem, no entanto, o fundo metafísico e religioso deste), somos levados a acompanhar tensos diálogos nos quais os personagens apresentam suas razões de conduta e escolha. A personagem de Sandra está presente em todos os diálogos, inclusive aqueles com seu marido, cujo apoio parece estar muitas vezes no limite da pressão para que ela recupere seu posto. Sandra só pode contar com seu próprio corpo e com suas palavras para defender seu argumento e a sua verdade.

Como muitos de seus filmes anteriores, somos confrontados no cinema a cada diálogo com um dilema ético que muitas vezes parece insolúvel, pois as razões dos personagens são ancoradas em suas necessidades concretas e limitam suas decisões. A obra dos irmãos Dardenne aborda como poucas na contemporaneidade a crise de ética do mundo do trabalho nesses últimos tempos de avanço e crise neoliberais. Os diretores, aliás, começaram sua carreira cinematográfica justamente fazendo documentários sobre a classe trabalhadora belga e a precarização das relações trabalhistas.

 

Marion Cotillard na pele de Sandra / Foto: divulgação

 

A este respeito, é importante observar que, apesar de ter sido aclamado pela crítica em muitos países, o filme dos irmãos Dardenne também recebeu algumas críticas sobre supostas inverossimilhanças do roteiro. Uma das críticas, por exemplo, destacou que em vários países (inclusive no Brasil) há leis que protegem trabalhadores nas condições vulneráveis em que Sandra se acha em função de seu problema psíquico e de sua licença. Outra análise, que justamente partiu de uma abordagem socialista do movimento dos trabalhadores, critica os diretores pelo fato de terem reduzido uma questão política e trabalhista numa questão da ordem ética e moral. Por que afinal Sandra, em vez de se humilhar à frente de seus colegas para recuperar seu posto, não acionou os sindicatos contra seus patrões, que provavelmente perderiam uma ação trabalhista? Por que afinal não resolver seu drama politicamente?

As críticas são pertinentes, mas em defesa da opção dos diretores, é importante destacar que a estrutura narrativa do filme, apresentada como uma parábola alegórica, não estava interessada em compor um retrato realista da sociedade trabalhadora belga (apesar do filme ser livremente baseado numa história real, lida pelos diretores numa matéria de jornal), mas de compor um microcosmo ficcional  despido de referências contextuais e mesmo despido de transcendência para concentrar sua objetiva no fim de semana de uma trabalhadora que poderia ser belga ou não. E com esta escolha, se o filme perdeu em contextualização, ganhou em universalidade, transformando a travessia de Sandra numa pequena odisseia da época do capitalismo terminal.

Pois o universo que os diretores abordam em toda sua obra é justamente o de um mundo do trabalho que perdeu suas referências de luta histórica e suas bases de legitimidade para retornar a um extremo modo de exploração do corpo e da psique dos trabalhadores. Em Rosetta (1999), por exemplo, filme que recebeu a Palma de Ouro em Cannes, acompanhamos a luta de uma adolescente para conseguir seu emprego além de toda moral e a um ponto de sua desumanização. Curiosamente, a repercussão deste filme ajudou a mudar a legislação trabalhista na Bélgica relativa à contratação de menores. Neste caso, portanto, a dissonância do filme com relação à realidade ajudou a transformar esta última.

Em Dois dias, uma noite acompanhamos e torcemos para que Sandra recupere seu emprego e nos angustiamos junto com ela em sua jornada pelo fim de semana. No entanto, mesmo que não saibamos o resultado de seus esforços, paira desde sempre, na personagem e nos espectadores, uma suspeita de que sua batalha já esteja perdida. Afinal, a própria situação já é uma derrota. Que o destino de um colega de trabalho seja decidido numa votação por seus outros colegas, que o sistema coloque uns contra outros (poupando o peso da decisão a seus patrões), que o uso de um instrumento democrático seja utilizado contra os próprios trabalhadores, é sinal de que o sistema já ganhou a batalha, de que a solidariedade já não seja o sustento das relações e de que cada um esteja entregue à própria sorte. Sandra se encontra só num mundo do trabalho esfacelado e a ela só resta, após acordar de um longo sono (a primeira cena do filme é justamente a de seu despertar), fazer a “boa luta”. Pois é na boa luta que ética e política afinal se encontram.

Finalmente, neste filme é preciso louvar o excepcional trabalho cênico de Marion Cotillard. Os irmãos Dardenne são conhecidos por preferirem atores desconhecidos ou mesmo não atores. Sua escolha por Marion como protagonista se deveu ao reconhecimento de seu trabalho no filme Ferrugem e Osso de Jacques Audiard, filme do qual foram produtores.  Em sua compostura física, em seu rosto cruamente melancólico, não sentimental, com suas roupas despojadas e em seu andar entre recuos e avanços, a atriz carrega as angústias da personagem e de nós espectadores. O realismo do filme está nesta vivência compartilhada por muitos do trabalho como uma luta contra a depressão, contra o empobrecimento das relações e contra o egoísmo de um mundo no qual estamos jogados.

 

 

Guilherme Preger é engenheiro e escritor, autor de “Capoeiragem” (Ed. 7Letras) e “Extrema Lírica” (Editora Oito e Meio) e também organizador do Clube da Leitura da Baratos da Ribeiro no Rio de Janeiro.

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