Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Os Oito Odiados (The Hateful Eight). EUA. 2015.

 

Cartaz do filme

 

A primeira impressão de Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino, é a de um forte déjà vu: não é seu roteiro incomodamente semelhante ao de Cães de Aluguel, primeiro filme do diretor americano? Oito personagens às margens da lei estão confinados em um único recinto e confrontam-se num clima de crescente suspeita mútua, agressão e violência ao ponto da autodestruição coletiva.

Esta semelhança acaba trazendo automaticamente uma comparação negativa: em contraste com o frescor experimental e inovador de seu primeiro filme, o oitavo filme de Tarantino é filmado com magnificência teatral, uma trilha sonora espetacular (de Ennio Morricone, ganhador do Oscar), e numa versão cinematográfica grandiosa em seus 70 mm. Estamos entretanto distantes do estilo laboral do cinema de autor. Os Oito Odiados é sem dúvida mais uma grande produção comercial do cinema americano, mas sem aventura experimental.

E há também a semelhança em ambiente e na época com o filme anterior, Django Livre, pois, como este, o novo filme se passa nos Estados Unidos do século XIX, pouco após o fim da guerra de Secessão e também após o fim da escravidão. Na verdade, Os Oito Odiados foi escrito como uma continuação de Django.

Esta última semelhança ainda acentua a sensação de desgaste: depois de parodiar e parafrasear dezenas de diretores em seus filmes, a ponto de transformar o recurso às referências em seu próprio estilo, Tarantino, como muitos outros diretores, passou a copiar a si próprio. Da metarreferência passou à autorreferência.

No entanto, é justamente a associação com Django que faz com que Os Oito Odiados se situe num plano diferente em relação a Cães de Aluguel, pois, seu último filme segue, como nos filmes imediatamente anteriores de Tarantino, a virada na cinematografia do diretor.

Virada fundamentalmente política: pois não são A prova de morte, Bastardos Inglórios e Django Livre filmes que abordam essenciais questões do cenário político contemporâneo: a misoginia e o feminismo no primeiro, o antissemitismo no segundo e o racismo e o escravismo no último? Questões cruciais não apenas da sociedade americana, mas de todo o mundo globalizado. Nesses filmes, Tarantino dirige seu olhar eminentemente estético para a questão das minorias.

Não que os outros filmes não fossem politizados, como se o virtuoso estilista das metarreferências pop não estivesse fazendo política em suas escolhas estéticas. Pulp Fiction, por exemplo, é com certeza um filme icônico dos anos 90, não apenas por sua inventividade, mas por refletir brilhantemente em sua crueldade estilizada o cinismo reinante da sociedade neoliberal em seu momento de acachapante vitória política. A famosa cena de abertura, com a discussão sobre hambúrgueres, pode ser entendida como a construção de um novo modo cínico de enunciação cinematográfica, onde discutir sobre sanduíches torna-se tão relevante quanto discutir filosofia. E em Jackie Brown, por muitos considerado seu melhor filme, a escolha pelo gênero Blaxpotation não pode ser considerada inocente e traz a questão do emponderamento da “minoria” negra, ou “afro-descendente”.

Mas algo de novo se inseriu em sua filmografia a partir de Kill Bill. A meticulosa construção formal de referências da cultura pop se alia a uma nova preocupação de conteúdo e olhar para a situação das minorias onde a condição da mulher, do judeu e do negro vai para o primeiro plano, sem que se abra mão do rigor estético e sem que se abandone a vertiginosa técnica da citação, ou o domínio da  tensão violenta, na qual sempre foi um dos grandes mestres do cinema, comparável nesse aspecto a Hitchcock e a Peckinpah.

Em Os Oito Odiados, há algo como uma condensação desses três últimos filmes, pois entre esses oito “outsiders” há a mulher (vivida por Jennifer Jason Leigh), o negro (o excelente Samuel Jackson), e o chicano (Demian Bichir), substituindo o judeu. Presos num armazém de estrada em meio a uma terrível nevasca, essas minorias se defrontam com a “maioria” branca (Kurt Russell, Walton Goggis, Bruce Dern, Tim Roth, entre outros). Assim, com sua mestria habitual, Tarantino faz aflorar as tensões raciais, de gênero e de classe numa violência cênica crescente. No entanto, justamente por estarem num universo à margem de toda lei e Estado (mesmo sendo um deles supostamente “xerife”), apesar das diferenças entre eles gerarem contrastes, ódios e enfrentamentos, os oito personagens estão irmanados num destino comum de destruição e morte.

 

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Samuel L. Jackson, Jennifer Jason Leigh e Kurt Russel / Foto: divulgação

 

Assim, neste último filme, Tarantino tanto segue a lógica multiculturalista dos seus filmes mais recentes, mas também se distancia deles, seguindo a linha de roteiro de seu primeiro filme, Cães de Aluguel. Para se entender esse jogo, é necessário distinguir o que há de comum na política dos filmes de “minorias” de Tarantino.  O comum é o fato de que todos são filmes sobre vingança. Sejam as mulheres que se vingam do dublê de corpo, dos judeus americanos que aniquilam os nazistas num teatro em meio à grande guerra, ou o escravo liberto que se torna o caçador de seus algozes escravistas.

E é importante também lembrar que a vingança é o tema do filme anterior a esses, a saga de Kill Bill.  Mas neste filme, que pode ser considerado quase um “turning point” para Tarantino, há uma diferença crucial em relação aos demais posteriores, pois embora aborde a questão feminina da protagonista A Noiva, neste a vingança é um sentimento fortemente individualizado, enquanto nos demais, a vingança se coletiviza e nessa passagem se politiza. Podemos mesmo dizer que no lugar de uma estética da vingança (em Kill Bill), passamos a uma política da revanche, pois a revanche seria a vingança coletivizada, passando do indivíduo aos grupos de gênero, étnicos e raciais.

Tomemos como exemplo Bastardos Inglórios, certamente a melhor e mais polêmica entre essas três obras. O filme não aborda apenas tematicamente a revanche dos judeus contra os nazistas. O filme mesmo, na grandiosidade de sua fantasia, é uma máquina de guerra contra a história, como se Tarantino quisesse dizer que o cinema é mais poderoso e pudesse desfazer a irreversibilidade temporal.  A obra, portanto, em seu aspecto formal, é uma revanche da imagem cinematográfica contra o real da inevitabilidade histórica. Por outro lado, a narrativa parece endossar a arriscada tese de que se os judeus europeus fossem tão bem armados como judeus americanos, o holocausto não teria acontecido, o que não deixa de ser um limite à sua opção política (do filme), pois é uma tese bastante questionável, já que desconsidera as lutas da resistência judaica durante a guerra.

Em Django Livre, o escravo liberto vingador, que aprende de um branco alemão as artes da pistola e do rifle, se torna um cavaleiro solitário e um exemplo para os demais escravos, e assim neste filme também a revanche faz parte da luta que quebrará suas correntes. Mas dependerá realmente de pistoleiros a luta contra a opressão?

Em Os Oitos Odiados, na cena onde Major Marquis Warren, vivido pelo excepcional Samuel Jackson, conta em retrospecto como cruelmente matou o filho branco do general confederado, temos novamente a lição de que a luta contra a opressão não admite trégua ou piedade. Mas não existe uma só luta contra a opressão, mas várias. Quando reunidas as minorias, o que elas fazem?  Um dos maiores interesses desse último filme do diretor está no laboratório social no qual se torna o armazém perdido nas montanhas gélidas de Red Rock, Wyoming.

Embora no início do filme uma aliança pareça emergir entre a mulher brutalizada e o negro caçador de recompensas, ou entre este e o chicano, quando vão guardar os cavalos no estábulo, ao longo do filme essas alianças se mostram mais e mais inviáveis. As minorias não se unem contra seus opressores, ao contrário, um jogo de traições é o que sustenta o suspense da narrativa. Curiosamente, entre as minorias, parece ser a mulher o elo mais insidioso mas mais fraco, quase como se Tarantino confirmasse a canção de John Lennon, onde a “mulher é o negro do mundo”.

Em Os Oito Odiados, a lógica política da revanche degenera no desejo individualista de vingança, rompendo então todas as possibilidades do estabelecimento de uma luta comum.  Assim, o retorno à aniquilação mútua de Cães de Aluguel parece o sintoma de um grande impasse na lógica multiculturalista da revanche das minorias. Mas é preciso lembrar que pistoleiros apontando armas uns aos outros são momentos típicos da obra do diretor e estão presentes em quase todos seus filmes. The Hateful Eight parece ser portanto o filme que encerra as perspectivas políticas de luta contra a opressão abertas pelos filmes antecedentes e ao mesmo tempo apresenta um impasse que não é nunca superado pela filmografia de Quentin Tarantino. Esperamos ver, nos próximos filmes, o grande diretor apontando sua câmera para outros lados.

 

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. 

 

 

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