Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

Era uma vez na Anatólia (Bir Zamanlar Anadolu’da). Turquia. 2011.

 

 

Enquanto esperamos O Sono de Inverno, vencedor do prêmio de Cannes deste ano (2014) estrear em telas brasileiras, é importante revisitar seu filme anterior, Era uma vez na Anatólia, que ganhou o prêmio do Grande Júri neste mesmo festival em 2011.

Ceylan é um diretor de cinema turco. É formado em engenharia elétrica e desenvolveu um gosto pela fotografia que o levou ao cinema. Tornou-se internacionalmente conhecido com o prêmio de melhor diretor em Cannes em 2008, com o filme Os Três Macacos. É conhecido pelas tomadas longas e estáticas, que nos lembram o cinema de Tarkovski, um de seus ídolos, e pelos personagens de vidas monótonas.

Era uma Vez na Anatólia leva ao extremo as características radicais desse diretor. Baseado em fatos reais, o filme se passa nessa região da Turquia, região natal de Ceylan. Um grupo de policiais, um médico legista, um juiz de instrução e coveiros, acompanham dois suspeitos de homicídio, irmãos entre si, em busca do corpo de sua vítima, numa certa noite de vento frio e possibilidade de chuva. A princípio essa busca parece totalmente infrutífera, uma vez que os acusados não parecem se lembrar do sítio da ocultação ou não querem encontrá-lo. Não sabemos das circunstâncias e da motivação do crime. No início do filme, a vítima e seus supostos algozes são vistos conversando amistosamente entre si. Um dos acusados parece ter um problema mental. O outro, seu irmão mais velho, de semblante tragicamente amargurado como um cristo turco, está como a esconder um terrível segredo. Imaginamos que ele esteja assumindo um crime que não cometeu apenas para livrar a responsabilidade de seu irmão menor. Mas isto não é certo.

Tudo é incerto neste filme, como em outros de Nuri Bilge. Não se trata da ambiguidade do roteiro, mas sim do efeito de indeterminação gerado por uma concepção radical da parcialidade de todo julgamento, incapaz de abranger a totalidade de uma situação. Era uma vez… nos conta a história da busca por um cadáver numa noite perdida em Anatólia, mas essa busca, narrada em quadros exasperadamente lentos, dá oportunidade a digressões variadas, algo aleatórias, como conversas cotidianas, banais, entre os personagens, cuja importância escapa ao espectador. A busca parece não encontrar resolução e não ter fim, porque talvez a caça pelo cadáver não seja a mais importante e haja outra procura ainda mais essencial, porém enigmática e indefinida.

 

Cena do filme / Foto: divulgação

 

O roteiro se sucede em passos lentos e o espectador fica algum tempo sem saber exatamente qual é o protagonista da história, pois o foco da objetiva varia entre os personagens que conversam e divagam banalmente, apesar da seriedade de sua busca. Ceylan é conhecido por tomadas pelas costas dos personagens quando se manifestam, de modo que ouvimos suas vozes, mas não vemos seus rostos. Ouvimos suas falas, mas não sabemos se são diálogos ou são monólogos interiores. O diretor afirmou que desejava fazer um filme sobre sua terra o mais realista possível, abordando as pessoas que lá vivem e utilizando não atores e até mesmo pessoas de sua própria família, como seu pai. E entre diálogos comuns que vão vagarosamente abrindo a perspectiva dos personagens, inseriu trechos de peças e diálogos de TcheKov.

Como nos dramas de TcheKov, os personagens de Ceylan parecem estar sobrecarregados de uma inércia profunda e agem sempre depois de muita hesitação ou não agem. É nesta inatividade essencial que se abrem espiritualmente. Aos poucos sua humanidade se revela na tela a partir de uma estranheza fundamental, como um deslocamento na narrativa que resiste a ela, que resiste afinal a formar uma história, a criar um encadeamento entre um começo, um meio e um fim. A humanidade deles é exatamente essa resistência à linearidade da fábula, da anedota, do enredo, da história.   Era uma vez... é um misto de road movie turco com uma narrativa policial, mas é um road movie sem destino e insolitamente sem passagem e é uma história policial sem heróis e com bandidos intensamente humanos.

Aos poucos aprendemos que o suspense dessa história policial é a resolução de uma busca que não tem objeto e que, portanto, não pode ter fim. Paradoxalmente, a busca está ao mesmo tempo suspensa e em prosseguimento. Um dos personagens fala de um filho problemático, outro de um suicídio que poderia ter sido evitado. Um dos acusados chora amarguradamente. O outro diz coisas sem sentido. Todos são personagens ao mesmo tempo coadjuvantes e protagonistas. Porém, com dificuldade entendemos que o protagonista verdadeiro é o médico legista que está inserido neste mesmo mundo com os demais personagens, impregnado dessa mesma atmosfera pegajosa, inercial e que compartilha com eles, ao menos nessa noite, do extremo estupor e da imobilidade.

As incrivelmente belas imagens noturnas das estepes turcas reforçam o sentimento de estranheza e deslocamento de todos os personagens que inseridos passivamente no roteiro do filme, parecem seguir outras narrativas que não vislumbramos.   Nuri Bilge Ceylan admitiu que este roteiro foi baseado em fatos da realidade e que escreveu a história junto com um dos seus participantes, justamente o protagonista. A ele, o médico legista, caberá um gesto, uma decisão que afinal representa um corte, uma interrupção que suspende a passividade ante o desenvolvimento da narrativa, como se essa fosse um destino além de toda escolha. Sua decisão tem um fundo ético, mas a razão desta, sua justificativa, permanece uma incógnita, um mistério para os espectadores. Sabemos que o médico decidiu se transferir para a pequena cidade em Anatólia apenas para facilitar sua aposentadoria. Mas o que esta informação nos diz sobre sua decisão? Talvez seu gesto tenha um lado humano de poupar o sofrimento de terceiros, talvez seja apenas devido a um cálculo egoísta para não atrapalhar sua trajetória profissional. Nessa indecidibilidade, o filme se recusa a determinar as razões e preserva assim uma abertura de significados que transfere para cada espectador a reflexão e a justificativa do gesto do legista. Talvez a função da fábula seja essa mesma de recriar os fatos da realidade e impedir as interpretações fechadas e as ações precipitadas como a de uma turba querendo linchar suspeitos de um crime antes de qualquer julgamento…

 

 

Guilherme Preger é engenheiro e escritor, autor de “Capoeiragem” (Ed. 7Letras) e organizador do Clube da Leitura da Baratos da Ribeiro.

 

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