Drops da Sétima Arte

7 Teses sobre Adeus à Linguagem de Jean Luc Godard

Por Guilherme Preger

 

 

 

1. “A ideia é simples”: muitos não enxergaram (e esta palavra é precisa nesse caso) narratividade no último filme de Godard, ganhador do prêmio de júri de Cannes em 2014, apenas um mosaico ensaístico de imagens e citações, como têm sido seus últimos filmes. No entanto, a narrativa neste filme é muito mais presente como eixo do que em seus filmes anteriores. O próprio Godard definiu uma “ideia simples” como eixo narrativo elementar: uma mulher casada e seu amante fazem uma DR. Depois o marido daquela gera um desastre. Tudo isso (ou seja, esta narrativa-matriz) é testemunhado por um cachorro que está entre o homem e a mulher, entre o amante e o casal, entre o romance e o drama, entre a cidade e o campo, entre a natureza e a cultura. O problema é que esta estrutura simples é duplicada num “segundo filme” que “é o mesmo e não é”. Este filme segundo é a passagem “da raça humana à metáfora” ou, em outros termos, da fábula à imagem. E é aí de fato que os problemas começam, no jogo especular entre textualidade (fábula) e figuralidade (imagem) para evidenciar que, nos saltos entre um plano e outro, há menos oposição do que polaridades cruzadas. A isso se dava o nome de dialética, a qual, segundo Eisenstein, é o princípio mesmo da montagem cinematográfica.

2.  2D/3D: perto de Adeus à Linguagem, experiências mainstream de 3D, como os filmes Avatar e Hugo Cabret, revelam-se totalmente cosméticas. Godard (com a preciosa ajuda de Fabrice Aragno) traz a técnica literalmente à superfície, fazendo de seu longa uma espécie de “filme em relevo”. Curiosamente, o diretor teria admitido numa entrevista seu desejo de provar que o “3D é completamente inútil”. Por isso, a sensação vertiginosa ou mesmo confusa que muitos espectadores sentem parece a muitos apenas a provocação estética de um “videomaker irritado” (Contardo Calligaris). Essa irritação conjuga-se também com os elementos ruidosos e obscenos de peidos e sons de defecação. Mas essa materialidade tem como função contrapor a distinção mais conceitual entre realidade e imagem. A distinção entre 2D e 3D não deve ser apenas a de embelezamento (como no cinema comercial), pelo qual o 3D estaria totalmente submisso à lógica da planaridade (ou platitude) acachapante do cinema de espetáculo, nem opositiva, no qual o 3D seria um obstáculo à visão em duas dimensões. O 3D entra justamente como uma perspectiva “em relevo”: toda visão deve levar sempre em conta seu próprio ponto de vista, isto é, o contexto de seu olhar.

3. “A realidade é o refúgio dos que não têm imaginação”: o problema então se torna: onde está a realidade para aqueles que têm a linguagem? A realidade está em algum lugar entre a fábula e a metáfora, entre as palavras e as imagens, entre citações e cenas, entre o texto e o cinema. O aspecto vertiginoso do filme (há quem passe mal durante a projeção) vem de uma febril e inquieta oscilação entre os polos imagético e textual. Os que reclamam do eruditismo pedante de Godard, com suas referências incansáveis, precisam admitir que este jogo desnorteante desconstrói mais do que afirma. O próprio Godard admite que não entende o sentido de suas citações. O que lhe interessa é a justaposição entre os dois planos. As citações não representam a voz de Godard, nem mesmo seu ponto de vista. Elas não são suas ideias representadas. É o conflito, o choque, a passagem que lhe interessa. Godard, com sua máquina de guerra contra o cinema comercial (onde Spielberg, desde o Elogio do Amor, é o grande vilão), denuncia que, na espetacularização cinematográfica, há um excesso da imagem que ofusca, obscurece, joga para segundo plano o texto (o roteiro, a narrativa, as palavras). As citações fazem testemunho como “provas” (“Les citations sont des preuves”, diz Godard numa entrevista) de que não há palavra sem imagem, mas também não há imagem sem palavra. Linguagem é esse “lien”, laço, ligação, entre uma e outra. Porém, mais uma vez cabe a questão, onde está a realidade? A realidade só poderia ser o lugar de uma fuga impossível da linguagem.

4.  A deusa-linguagem: devo à amiga Maiara Líbano esse preciso “calembour” que teria feito a delícia do próprio diretor. O filme de Godard não seria um abandono, mas uma busca nostálgica da linguagem, não um réquiem, mas uma ode. Algo como um “Elogio à Linguagem”. Dizem que na região da Suíça onde o cineasta foi criado, há um jogo de palavras. “Adieu” significa antes “olá”, “hello”. Talvez “até logo”. Assim, o caráter intempestivo, mal-humorado ou mesmo escatológico, com peidos e defecações, onde o “pensar virou cocô” (referência à imagem de Rodin do Pensador), não passaria de um viés moralista que condena na “sociedade do espetáculo” a supremacia icônica do “ver”, contra a perspectiva profunda, radical do “olhar”, este impregnado de linguagem. Assim, podemos ressignificar o problema do 3D no filme: o relevo da imagem cinematográfica é uma terceira dimensão que está além do texto e da imagem e que não é o refúgio tranquilizador da realidade, mas a espessura da linguagem como elo, como ligação. Mas embora esse viés hermenêutico seja inteiramente verossímil, ele traz um problema: qual é afinal a questão sem solução existente entre o casal, ou entre o trio em triângulo (mulher-marido-amante) que traz o desenlace trágico? Qual a razão da DR infinita de que o filme laboriosamente nos apresenta? Qual é o drama humano que a sedução da deusa-linguagem é incapaz de resolver? É essa a questão que está posta a nu, como o belo corpo da atriz Heloíse Godet na grande tela de cinema.

 

Cena de Adeus à Linguagem / Foto: divulgação

 

5. “Não há nudez na natureza”. Se não há naturalidade na nudez, toda nudez é cultural. Mas isso também nos diz que não é possível “pôr a nu” a realidade, tal como ela é, uma realidade que não estivesse sempre “vestida”, “paramentada” de linguagem. Mais do que cultural, toda nudez é política. A nudez não está na natureza ou na realidade, mas no olhar. Por isso, a própria questão da nudez dos atores e sobretudo das atrizes está marcada pela presença do imaginário. Outra amiga, Daniela Ribeiro, observou que a nudez feminina está muito mais presente do que a nudez masculina neste filme, o que é verdadeiro. No entanto, no cinema de Godard nunca esteve ausente a questão de gênero. Não por acaso, Masculino/Feminino é um de seus grandes filmes nos anos 60. Mas a observação é inteiramente pertinente, pois ao longo dos tempos, em seus filmes, os corpos femininos em sua nudez são muito mais explorados do que os corpos masculinos (justiça seja feita, em Adeus à Linguagem, a nudez masculina é mais presente do que em filmes anteriores). Mas esse tropismo de gênero antes confirma que nenhuma representação cultural é isenta de perspectivas. A fábula simples de Adieu… nos conta sobre os arquétipos masculinos e femininos, da busca feminina por “espiritualidade” em seus permanentes questionamentos e a tendência masculina à redução do pensamento ao corporal, ao excretor, ao sexual. A cena no box do banheiro onde nu o casal se estapeia entre o desejo e a recusa é uma belíssima representação dessas tensões arquetípicas. Se os arquétipos reforçam as representações ideológicas por um lado, uma perfeita e ideal simetria pareceria inteiramente falsa. A saída aqui está não apenas em defender uma representação mais equilibrada dos vieses culturais, mas em contar com a terceira via que os relativizam. Essa é a função crítica do 3D, que nos lembra da perspectiva. E que nos faz recordar que entre os polos dualistas da mulher e do homem há o animal.

 6. Rocky. “O animal não está nu porque ele é nu”. A nudez cultural, relativa, assimétrica do casal, se opõe à nudez “essencial” do animal. Mas o cachorro (que “pertence” ao casal Godard e Anne-Marie Mieville e que ganhou um prêmio em Cannes por sua atuação neste filme) não representa o polo da natureza em oposição ao polo da cultura onde está o casal. Em outra citação (de Charles Darwin) comenta-se que o cão é aquele que ama mais o homem que a si mesmo. Rocky é um laço, um meio de ligação. Não é natureza ou cultura, ele é natureza e cultura. Ele habita uma região onde a linguagem se encontraria com seu oposto, a suposta realidade não mediada. Por seus olhos “melancólicos” haveria um testemunho dessa região além da linguagem, pois ele é egresso de uma época anterior a essa separação. Só que não: o contraste que o filme anuncia é a diferenciação entre texto e imagem e não a separação idealista entre natureza e cultura. Como Rocky, a linguagem é também um meio, um “lien”. Existe antes um distanciamento da linguagem dela mesma, uma fratura, um hiato. Essa linguagem se fendeu na saturação do texto pelas imagens e na sutura das imagens pelo texto (citações).  Rocky, portanto, não é a testemunha última e nostálgica de um passado perdido de conciliação, anterior à confusão entre natureza e cultura. Há algo mesmo de utópico em seu olhar que aponta não para o passado, mas para o futuro, uma maneira outra de se encontrar com a linguagem, mais depurada: “Je cherche la pauvreté dans la langage”, diz uma personagem. Numa palavra cara a JLG, essa outra forma diversa é “autrement”, “outramente” numa tradução canhestra. Em outra citação, fala-se que o face-a-face inventou a linguagem. Esse outramente é, pois, um encontro com a face melancólica do animal, não apesar da linguagem, mas em seu nome. No poema Versos a um cão, que se Godard conhecesse certamente figuraria em seu filme, Augusto dos Anjos nos fala sobre a “esquisitíssima prosódia” dos cães, um termo que caberia perfeitamente para caracterizar este filme. A esquisita prosódia é algo ainda em devir, apontando não para separações idealistas, mas para superações em outros planos ou mundos.

 7. Ça m’est égal. O presente é um animal esquisito (“drôle”), diz o homem. Tanto faz, diz a mulher, gritando. E repete o mesmo em novo grito. “A consciência do homem é cega, não é o animal que é cego. O homem é incapaz de ver o mundo. Isto que está fora é a verdade?” Tanto faz, talvez dissesse Rocky. Casal e triângulo amoroso; imagem, texto e linguagem; homem, mulher e cão. Adeus à Linguagem é marcado por dualismos a que se somam a presença de um terceiro, como um jogo entre o 2D e o 3D. É como se os dilemas, questões, perguntas e reflexões que abundam na narrativa não pudessem ser resolvidos na planaridade de duas dimensões e precisassem de uma terceira via para se redimensionar. Na perspectiva desta terceira dimensão, as diferenças planares, os hiatos e incompletudes ou não importam ou se tornam pontos cegos. Godard pensou este filme numa estrutura dupla, especular, na qual um desvio se introduzisse: “Da raça humana à metáfora./ Isto termina em latidos/ e em choro de criança./ No meio tempo vemos pessoas discutindo sobre a queda do dólar, sobre a verdade em matemática e sobre a morte de um pardal”. Tanto faz diria a mulher, ou Rocky (mas o homem não diria isso. Talvez Godard sim). A metáfora não é um espelho nem da ideia nem da realidade, mas uma outra via. Uma perspectiva. Um relevo. Entre a natureza e a cultura está a linguagem como um terreno, um caminho comum. E entre o texto e a imagem, numa mesma liga, está o cinema.

 

 

Guilherme Preger é engenheiro e escritor, autor de “Capoeiragem” (Ed. 7Letras) e “Extrema Lírica” (Editora Oito e Meio), e também organizador do Clube da Leitura da Baratos da Ribeiro no Rio de Janeiro.

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