Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

The Square – A Arte da Discórdia. Suécia/Alemanha/França/Dinamarca. 2017.

 

 

O filme de Ruben Ostlund, The Square (2017), foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2017 e concorre ao Oscar de filme estrangeiro no Oscar 2018. Esse sucesso de premiações não levou, no entanto, o filme às principais listas dos melhores do ano passado.

A versão em português do título deste filme sueco é um tanto infeliz. Não é sobre arte nem sobre discórdia. A simplicidade do título deveria ter sido prezada na tradução.

O filme é uma sátira e, em certos momentos, uma comédia. Há momentos tensos e um conjunto de peripécias que prendem a atenção num filme talvez excessivamente longo (144 minutos).

Christian (Claes Bang) é o curador-chefe de um museu de vanguarda em Estocolmo, Suécia. O museu está às vésperas de uma exposição de uma obra intitulada “O Quadrado” e que tem o seguinte conceito: “O Quadrado é um santuário de confiança e cuidado. Dentro dele todos têm direitos e obrigações iguais”. Para o lançamento da nova exposição, o museu deseja fazer uma campanha publicitária e contrata uma agência para tal.

A cena inicial é uma entrevista na qual a personagem Anne (Elizabeth Moss) pergunta a Christian sobre uma postagem em seu blog pessoal, onde ele divaga sobre reflexões estéticas um tanto confusas sobre a distinção de conceito entre exposição/não exposição. O próprio Christian não entende o que ele quis dizer e responde com uma comparação banal: se a bolsa de Anne fosse esquecida numa sala do museu, seria considerada uma obra de arte ou não?

O filme foi aclamado como uma discussão sobre a validade e os limites da arte contemporânea. Na mesma entrevista, em tom de blague, Christian afirma que um dos propósitos do museu que dirige é atrair investidores no acirrado mercado da arte e ao mesmo tempo testar os limites desse mercado. O tom satírico do filme parece ser uma ironia a este paradoxo.

Mas o desenrolar do filme parece se distanciar das discussões estéticas propriamente ditas. Acompanhamos de perto os percalços da vida privada de Christian. Logo no início, após a entrevista, ele é vítima de um logro e tem sua carteira e celular roubados. Desenvolve um estratagema para recuperá-los e tem sucesso em reaver seus pertences, mas a custo de provocar danos colaterais e questões éticas. Envolve-se sexualmente com Anne, a entrevistadora americana. Leva sua filhas para fazer compras no shopping, etc. O filme enfoca sua desastrada, porém banal, vida pessoal e deixa de lado o universo de debates sobre arte.   A tumultuada vida de Christian realmente atrai o foco narrativo do filme e a discussão sobre arte contemporânea parece um mcguffin, um pretexto.

Porém, em outras cenas isoladas temos o retorno do tema da arte. Numa delas, um dos artistas expositores é apresentado no museu através de uma conversa, mas a entrevista é interrompida diversas vezes pelas reações infames e constrangedoras de um paciente da síndrome de Tourette. Em outra longa cena, das mais tensas e interessantes, uma performance com o “homem-macaco” é realizada durante um jantar de gala com patrocinadores e extrapola as fronteiras entre o real e a ficção, arte e convenção e entre o aceitável e o inaceitável.

 

Foto: divulgação

 

Essa extrapolação de fronteiras talvez seja uma das chaves de entendimento do filme. The Square não aborda a arte propriamente, mas a “forma” em si. Afinal, o “quadrado” é uma forma fechada em sua simplicidade. Supostamente, devemos nos focar em seu interior, onde haveria “cuidado e confiança”. O santuário quadrático é um espaço de proteção. No entanto, a campanha publicitária contratada para dar visibilidade à exposição nas redes sociais tem um efeito desastroso e explosivo. A campanha se dá fora do quadrado. O filme de Ostlund tem esse desenvolvimento astucioso: se queremos entender o filme devemos olhar para fora da forma.

Toda forma é uma unidade complexa: inclui algo em si ao mesmo tempo que exclui todo um universo. O lado de dentro é simples e harmônico, o lado de fora é múltiplo e caótico. E apesar de ser um “santuário” aurático, nenhuma forma é capaz de isolar o lado de dentro do lado de fora. Se o lado de dentro tem algo de resguardo harmonioso, o lado de fora é banal e ruidoso. Mas é impossível blindar o lado de dentro de uma obra de seu lado exterior, pois o ruído ultrapassa os limites e penetra no interior.

A vida ordinária de Christian é esse banal que é o fora da arte, cheio de ruído e confusão. Não é tanto a arte que se revela blindada, mas a própria trivialidade da vida e da mentalidade de Christian parecem infensas à sublimidade estética que lhe é tão próxima.  Mas mesmo essa afirmação se revela frágil: o filme é um jogo de ultrapassagens, de transposições de fronteiras.

Numa cena exemplar, a tensa conversa numa sala de exposição entre Anne e Christian sobre a noite de sexo de ambos é interrompida diversas vezes pela sonorização de uma das instalações em exposição. Nesse caso, é a obra de arte que é o “fora” ruidoso da cena da conversa. Já os impropérios do paciente acometido de Tourette são emissões ruidosas do lado de fora para o lado de dentro do universo da vaidade artística.

 

Foto: divulgação

 

É possível circunscrever uma divisória entre arte e vida? E o traçado da forma, o que ele divide? Se a forma circunscreve certo domínio separado e ficcional, essa separação é relevante?  A cena de sexo do casal é testemunhada pelo insólito chipanzé de estimação de Anne que, no entanto, não é capaz de perceber nada de inusitado. Mesmo assim, Anne fecha a porta do quarto. E há também o homem-macaco que agressivamente ultrapassa todas as fronteiras entre representação e convivência ou rompe as fronteiras entre espetáculo e cerimônia.

Também o universo hype da vanguarda estética da Suécia é invadido pelos mendigos e pedintes que se multiplicam nas ruas da social-democracia escandinava. Christian, nesse aspecto, como curador, é um mediador entre fronteiras de mundos. Não é arte ou banalidade, sucesso ou fracasso, a transgressão ou o politicamente correto. São, na verdade, composições entre esses extremos. Mas também não é uma questão de que não há forma, ou que a forma, como uma ficção, é uma distinção irrelevante. Pois se não há limites, também não há passagens de um lado ao outro, como se demonstra amargamente pela performance violenta do homem-macaco.

Não é tanto uma discussão sobre questões avançadas da arte contemporânea que torna The Square um filme interessante, mas uma discussão sobre formas, limites e traçados. E que há tanto o dentro como o fora do quadrado. E que não podemos circunscrever nossas ações, pois elas sempre extrapolam. Curiosamente, no entanto, embora seja um filme que aborde várias questões, o roteiro de Ostlund é um tanto tradicional. Na forma de uma narrativa que se desenvolve em peripécias e cujo foco se concentra em sua própria trama, é justamente a forma cinematográfica que não é abordada. Pode se dizer que talvez sejam essas questões contextuais sobre o mercado da arte, sobre o aumento da pobreza e da criminalidade na Escandinávia, sobre as redes sociais e sobre o politicamente correto que são o lado de lá da objetiva da câmera. Mas, na verdade, essas questões todas contextuais estão inseridas no enquadramento fílmico, em sua diegese. É o próprio frame cinematográfico que se obscurece no fluxo narrativo. Toda arte distingue não apenas aquilo que a forma encerra e desencerra, mas a própria forma em si.

 

 

Guilherme Preger (1966) é escritor e engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É autor de Capoeiragem (7Letras, 2003) e Extrema lírica (Oito e Meio, 2014). É um dos organizadores do Clube da Leitura. Participou como autor e editor das quatro coletâneas do coletivo. É mestre em Literatura Brasileira e doutorando em Teoria Literária pela UERJ, com pesquisa sobre as relações entre ciência e literatura.

 

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