Gramofone

Por Fabrício Brandão

 

RUSSO PASSAPUSSO – PARAÍSO DA MIRAGEM

 

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Viver jamais será algo linear e predeterminado. Não é demais pensar que nossa existência é semelhante a uma colcha de retalhos, na qual vamos juntando fragmentos de nossa passagem por esse estranho planeta chamado Terra. A própria construção ocidental da felicidade não passa de uma imagem desbotada, uma frágil quimera. E é bom que seja assim, pois desse modo o desafio de tocar os dias adiante pode contar com um componente a menos no quesito zona de conforto.

Mas por que falar de nossos vestígios e de duma volátil visão de felicidade? Talvez para manter a mente mais voltada aos sentimentos no modo espontâneo como eles se apresentam. Significa afugentar previsões, abandonar planos perfeitos, respirar e apenas seguir em frente, sem bússolas ou outros artefatos similares. A consequência imediata disso será, no mínimo, a de saborear uma experiência denominada de presente, esse estado de coisas que ainda permanece estranho a muitos mortais. No caso do cantor e compositor Russo Passapusso, os tais sinais do hoje fazem sentido e justificam a construção do seu primeiro disco solo.

Paraíso da Miragem é um instante particular na carreira do músico baiano. Acostumado às intensidades vocais, textuais e instrumentais de sua trajetória à frente de investidas como o BaianaSystem, Bemba Trio e o coletivo Ministéreo Público, Russo agora se volta para suas observações intimistas de mundo. Se por um lado há uma espécie de desaceleração do lado tradicionalmente efusivo do artista, dadas as peculiaridades de suas outras experiências musicais, por outro, emerge a feição daquele que discorre sobre a vida, o amor, as questões sociais do país e outros temas a partir de uma pessoalidade caracterizada por pungência e alguma serenidade.

O álbum é marcado por canções que mesclam letras precisas com arranjos multifacetados de brasilidade. De cara, faixas como Paraquedas, Flor de Plástico e Sem Sol são verdadeiros destaques do disco e representam com vigor o momento do artista. Reúnem pontos de delicadeza e um sentido poético e contemplativo diante da existência, aspectos que pontuam muito bem o caráter introspectivo do trabalho.

 

 

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Russo Passapusso / Foto: Fábio Bitão

Como de costume, o discurso é algo inalienável em Russo Passapusso. E isso se dá de modo especial no samba de Sangue do Brasil, através do qual os olhares estão voltados para emblemáticas mazelas de nosso país.  “Vai adiando a tristeza enquanto a morte não vem”, diz o canto de Matuto, outro ponto forte do disco. Nos apelos instrumentais de Areia, há uma valiosa sensação de flerte com os preciosos afrosambas de Vinicius de Moraes e Baden Powell.

Em matéria de produção, é possível perceber de que modo a atuação de parceiros como Curumin é determinante para o resultado da obra. Uma escuta atenta já confirma isso. Há um quê do mano paulista na concepção do álbum. Somam-se ao time de produtores os nomes de Lucas Martins e Zé Nigro. Contando também com as participações de gente do quilate de Edgar Scandurra, BNegão, Marcelo Jeneci e Anelis Assumpção, Paraíso da Miragem tem coerência e unidade, exaltando formas de se lidar com a imensa lista de sentimentos que fazem morada em nossas mentes e corações.

Russo Passapusso tem o que dizer e cantar. O saldo das escutas fica por conta de cada ouvido. Enquanto o fim não vem, que tal podermos arriscar que o paraíso não existe e que tudo é apenas uma questão de estado de espírito?

 

 

 

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