Gramofone

Por Daniela Galdino

 

LIRINHA – O LABIRINTO E O DESMANTELO

 

CAPA


“transformarei a ferida
numa orquídea de luz mineral”
(Lirinha, em “Ser”)

Processar as dores. Curar as feridas. Lavar os velhos rancores. Depuração parece uma palavra bem associada ao novo disco de Lirinha que acaba de vir à tona neste 2015. Temos aí um salto corajoso rumo ao incerto: abismo ou labirinto. Lirinha reúne fragmentos e nos traz a experiência de retorno daquele homem, artista que não interrompe a caminhada para dizer. Fala em movimento. É outro. Desmantelado, re-montado: nos amores, nas artes, na (des)aventura de ser.

Em O labirinto e o desmantelo (2015) Lirinha acentua a escolha já trilhada a partir de LIRA, disco lançado em 2011. Com feição ainda mais harmonizada estão, no disco de agora, a poeticidade cortante, os efeitos eletrônicos, os tons de suspensão mística. Acertadíssima a parceria com Pupillo, que assina a produção musical. O Lirinha destemido, corajoso na sustentação dos caminhos escolhidos se apresenta para desafiar as classificações e desmantelar a identificação nítida dos gêneros musicais. São dez canções muito bem irmanadas. Em todas elas fica evidente um hibridismo que torna a audição do disco uma deliciosa brotação de inusitados.

Por exemplo, em “Pra fora da terra” dá para perceber um flerte erudito. A partir disso, ouvimos delicadezas que nos fazem lembrar os antigos realejos desaparecidos das ruas. Num flash, dois mundos irmanados. E nessa mesma canção surge o sopro contemporâneo sintetizado, a guitarra que arranha delicadamente. Lembranças, em círculo, bailam, ressoam em palavras, em sons. Nessa faixa temos também uma poeticidade que causa a intensa sensação de circularidade, no sentido de fluidez, de movimentação de energias renovadoras: “lavo com água corrente/ teu poço dos velhos rancores”. Grata surpresa, bela aparição do inesperado.

A canção “O labirinto e o desmantelo” nos faz lembrar as incursões experimentais de Lula Côrtes & Lailson no lendário disco Satwa (1973). Fica esse gosto de nitidez mística bem ao modo setentista, o que, sem muito esforço, traz também à cena o Pedro Santos de Krishnanda (1968). Lirinha vem para compor uma densa tríade, mas sem o compromisso das filiações. Ele se apresenta deixando visível – aqui e acolá – os (in)discretos fios que o ligam às experimentações dos mestres, mas o faz com um modo muito seu, com os elementos do momento de agora, remontando e transgredindo. Já havia esse anúncio no disco anterior, LIRA, com a canção “Adebayor”, mas nessa segunda experiência vemos um Lirinha mais evidente no desafio de encenar uma dicção própria, resultado das siderações que ele constrói.

Se em LIRA fomos surpreendidos com a participação de Ângela Rô Rô na faixa “Valete”, nesse segundo disco temos a presença de Céu na canção “Filtre-me”. Extremidades mediadas por Lirinha. Em ambas as canções a intensidade. Essa conexão com artistas pernambucanos não é novidade para a cantora/compositora Céu, ela já havia participado de discos de Siba, Otto, Nação Zumbi. De alguma maneira essa presença fica sendo um desafio que pendula entre o conhecido e o não esperado. Aqui, dividindo os vocais com Lirinha, Céu compõe uma bela fusão e algo muito sinérgico se acentua mesmo no momento em que ambos entoam: “quando passa em mim a tua voz/ tão cercada de poeira/ não esqueço o filtro do amor”. A música se confunde com a espinhosa maciez da experiência amorosa.

Lirinha por Caroline Bittencourt

Lirinha / Foto: Caroline Bittencourt

Uma imponente tuba vai abrir caminhos na canção “Mergulho”. Digo caminhos porque essa música nos deixa com a sensação de deslocamento, atenta contra a nossa possível imobilidade. “Mergulho” é mesmo um passeio para o qual eu não estava preparada, apesar das surpresas que tive ao escutar as músicas anteriores. É nesse momento do disco que Lirinha nos leva para as profundezas. Profundezas do corpo, das vontades. Aí, palavras e musicalidade indicam amplidões sem pudor algum. A ânsia é tanta que o trânsito é por lugares inesperados: “agora o plano é te fazer feliz/ correr os tubos do teu coração/ provar além/ cicatrizar o chão/ e sonhar/ andar nos fios que ligam às estrelas/ capacidade de mudar as coisas”. É o corpo ou é a amplidão? Essa é uma canção imensa, aliás, em todo o disco dá para perceber que a alquimia de Lirinha aproveita bem tudo o que é vasto. “Mergulho” é também um intenso eco, tenho morado nessa música (e ela em mim) desde a primeira vez.

“Odin” é uma canção aguda. Por in-coincidência encerra o disco. Nesse momento Lirinha requisita quem está do outro lado da margem, ou seja, nós, para perguntar “quem sabe encontrar/ alta forte felicidade”. A Combustão das experiências particulares. Essa equação sempre será difícil de ser resolvida quando se tratar de arte. A essa altura, muita coisa irmanada, não dá para dizer que o disco é hermético ou é um relato sonoro do particular porque, ouvindo com atenção todas as dez canções, já sentimos (e nos sentimos) “a planta pisada/ o cais retorcido/ farol mergulhado/ um balde de sonhos no fundo da casa/ onde o mar se tornou salgado”. Já somos o coro que acompanha a voz de Lirinha. Quando essa última canção se conclui, fica a ação imediata de escutar a sequência novamente, sem maiores preocupações com o tempo do relógio. O disco dá uma impressão de ciclo que se renova, de círculo que se movimenta.

É um disco tão amplo que somente ao escrever este texto fui perceber que todas as faixas, juntas, totalizam 35 minutos. Nas vezes em que escutei tive a sensação de que a experiência havia ultrapassado os ponteiros, juro que imaginei que o disco durava mais de uma hora, juro. Isso é que me deixou impressionada: Lira, sabedor de que está dentro e fora das lógicas do mercado fonográfico, insere músicas com menos de 4 minutos de duração, mas implanta expansões em cada uma delas. Nessa aventura sensível fiquei desorientada de cronômetros. E assim não dá para detalhar o disco faixa a faixa, melhor convidar outros seres para colocar na roda as suas impressões. Aí só o contato direto com a musicalidade de Lirinha poderá mover as sensibilidades.

Esse disco “O labirinto e o desmantelo” deve ser incluído no repertório das nossas urgências. Não duvido. Deixo apenas um aviso (até desnecessário): é para escutar de peito aberto, inútil mover-se (ainda) pelo saudosismo dos tempos do Cordel do Fogo Encantado. Aqui encontraremos um outro artista, porque é outro o homem e outros são os tempos não marcados por apagamentos, mas pela ânsia de descobertas.

Agora, cinco discos depois, o que podemos dizer da trajetória de Lirinha é o seguinte: ele é o outro que não sepultou o mesmo. Com o entendimento de que se faz impossível apagar as origens, fico muito mais instigada em descobrir como esse ser-tão dialoga com paragens diversas e alimenta as inquietações artísticas. E para inconcluir a questão, vem o eco: “que lugar é esse labirinto / desse nosso desmantelo?”

 

 

Daniela Galdino é Poeta, Performer, Produtora Cultural e Docente da UNEB. Muito principalmente é construtora de pontes aéreas e defensora do direito ao delírio (como forma de sobrevivência).

 

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1 comentário

  1. Daniela, parabéns e obrigada! Já havia visto uma entrevista com Lirinha e fiquei inquieta com o resultado desse novo momento, pois apesar de não ser uma conhecedora da sua obra, estou atenta ao seu movimento! A sua análise acendeu o interesse em conhecer o novo disco e retomar audições do passado que sei absolutamente necessárias! Apolo e Dioniso estão equilibrados em seu desmantelar-se para nós leitores!Texto digno de figurar em qualquer revista especializada em Música! Uma delícia!Digno da qualidade da Diversos!

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