Gramofone

Por Fabrício Brandão

 

SYLVIO FRAGA QUINTETO – CIGARRA NO TROVÃO

 

Capa - Cigarra no Trovão

Som, palavra, imagem. Tudo amalgamado a um surgimento de novas dimensões. Outros territórios onde os sentidos avançam e a percepção atenta conduz a experimentados cenários. Eis o grande espaço de vivências tidas a partir da música, lugar preenchido com nuances, detalhes, sabores e, principalmente, arremessos da alma.

É artífice dos sentimentos quem se atira ao desafio de vislumbrar canções. Trajeto que permeia momentos difusos da existência numa tentativa de captar o que está em suspensão diante dos instantes todos. Como materializar a conjunção entre letra e música diante do dissipado turbilhão de janelas que dão para o mundo?

Talvez um artista como Sylvio Fraga possa nos trazer algo a lume, tendo em vista que suas abordagens sonoras erguem um consistente universo de possibilidades. De início, importa dizer que um delicado filtro reveste os olhares sobre todas as coisas circundantes. Uma capacidade de conferir evidência a pequenos grandes gestos cotidianos, muitos deles espalhados por uma rotina que julgamos acostumada pelos matizes do tempo.

Em Sylvio Fraga, verbo e som redimensionam a ciranda da vida. Um mergulhar nas imagens que se perdem despercebidas por nossos sentidos quando estamos mais preocupados em reter coisas que estão muito além do nosso mero alcance.

Andamos bem se tomamos Cigarra no trovão como sendo uma verdadeira ode às coisas simples da existência. Nele, Sylvio, na esmerada companhia de seus músicos, acerta em cheio quando formula um ambiente diferenciado de sonoridades. Por todos os cantos do disco, o conteúdo das letras vem fazer par com um cuidadoso aparato instrumental. Se o discurso fala por si e prima pela sugestão, tudo ganha ainda mais relevância diante dos arranjos e melodias ali presentes.

Sylvio Fraga - Foto: João Atala

Sylvio Fraga / Foto: João Atala

 

Com um álbum autoral nas mãos, Sylvio mostra que suas letras têm uma aproximação muito grande a outro ofício seu: a poesia. Podemos observar isso em canções como Quartinho, Pedras Brancas (parceria com o poeta Eucanaã Ferraz), Samba da Cigarra e Fiquem calmas as senhoras. Há ritmo, síntese e profundidade bem próprios do labor poético. Numa faixa como Ciclotímica, por exemplo, a escolha das palavras, seu fluxo e encaixe dão vida ao que é cantado com dinamismo, bem típico do andamento de um trem que passa e nos conduz adiante dentro dum cenário de alternância de sensações. É tradução da existência em si, com seus altos e baixos.

Mesmo sabendo que há uma forte influência jazzística dando conformação ao disco, é difícil determinar um gênero específico para ele. E muito provavelmente isso nem ocupe as preocupações do quinteto, tampouco do seu mentor em si. Assim, o sublime curso do álbum também flui pelas vias de vertentes como o samba e MPB, configurando um resultado equilibrado e notadamente orgânico.

É fundamental destacar o papel do trompete de José Arimatéa, o piano de Lucas Cypriano, a bateria de Mac William Caetano e o baixo de Bruno Aguilar, músicos que, juntamente com Sylvio, estão harmoniosamente entrosados em torno de um projeto que ganhou um definido corpo.

O título do disco em si já nos permite vislumbrar significados. O principal deles pode nos remeter à conclusão de que ainda existe e resiste certa ternura e leveza na vida. Diante da dispersão e dos ruídos a que estamos submetidos incessantemente, todos eles formas de opressão nalguma medida, também será possível buscarmos a serena experimentação dos sentimentos.

Fabrício Brandão é um dos editores da Revista Diversos Afins. Cultua livros, discos e filmes com amor táctil e espiritual.

 

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