Gramofone

Por Fabrício Brandão

 

MARCELO YUKA – CANÇÕES PARA DEPOIS DO ÓDIO

Há pontos de partida e chegada nesse imenso território chamado vida. No movimento dos decisivos arremates aos quais ousamos, habita um ponto intermediário que nos permite acessar alguns retornos. Não se trata necessariamente de voltar a determinadas origens, algo que poderia remeter a um sentido de nostalgia. Definitivamente, não é isso. A ideia aqui presente é a de que certos recomeços têm muito mais a ver com superações de cenários pretéritos, assinalando, pois, etapas que inauguram novos estágios da consciência em torno de fatos, lugares e pessoas.

Quiçá a nossa passagem aqui pelas bandas terrenas não seja também um exercício constante de estarmos atentos aos sinais de toda natureza. Tudo isso talvez para entendermos quem ou o quê realmente nos tornamos. E fica a pergunta: ainda dá tempo de modificar certas trajetórias?

Ao que parece, a indagação lançada acima faz parte das novas veredas trilhadas pelo músico Marcelo Yuka. De imediato, o nome de batismo de seu novo disco, Canções para depois do ódio, assemelha-se à ponta de um gigantesco iceberg. É, de fato, um título sugestivo, impactante e provocador a nos situar em meio ao mar bravio das procelas humanas. Numa tradução mais ágil, a constatação do quanto se é possível a qualquer pessoa interferir no seu próprio destino.

Canções para depois do ódio é um verdadeiro enxergar além dos domínios mais acostumados. Aposta num porvir perfeitamente enquadrado numa noção de renascimento das pessoas. Como é de costume, não faltam a Marcelo Yuka as ferramentas discursivas capazes de evocar um caminho para as mudanças de rumo. Em todas as suas faixas, o disco promove deslocamentos de tempos e espaços que se harmonizam com a agudez do verbo de seu criador.

É justamente na potência verbal de suas composições que Yuka confere um caráter orgânico ao seu novo trabalho, pois cada uma das 16 canções do álbum aparece integrada a um complexo painel de observações sobre a contemporaneidade e seus laços. Nesse trajeto musical, há um fluxo através do qual nada se dissocia de um conjunto que carrega em si um vigoroso corpo de significados. De um ponto a outro da obra, tudo se encaixa e cada peça desse vasto mosaico de imagens não sabe viver sem o seu correspondente.

Marcelo Yuka em show no Circo Voador / Foto: Daniela Dacorso

Após percorrermos canções como O dia em que o homem se cansa, Por pouco, Myto, Agora nesse momento, A carga, Memórias artesanais e Algo mais explícito, temos uma noção mais apropriada do movimento vivo que está contido no disco. Em cada parte do álbum, restam claras as razões pelas quais Yuka se consolida como um dos letristas mais significativos de seu tempo. Como poucos, sabe transitar com pungência por matizes políticos, filosóficos e afetivos, pondo em evidência o papel desempenhado pela memória.

Um outro grande aspecto do disco são as escolhas vocais. Contando com as valiosas interpretações de artistas como Céu, Black Alien, Cibelle, Barbara Mendes, Seu Jorge, Vicky Lucato, dentre outros, as canções se apresentam com um vigoroso repertório imagético e sonoro. Em boa parte delas, está presente a voz marcante de Bukassa Kabengele, cantor belga de origem congolesa, que integra A Entidade, banda conduzida pelo próprio Marcelo Yuka (voz, programações e sampler) e em cuja formação também traz artistas como Ricô Bassito (baixo e percussão), Bárbara Ferr (voz), Tedy Santana (bateria e percussão) e Muralha (VJ). Tudo isso posto e devidamente mesclado, há na obra uma forte presença de elementos musicais africanos, além de trazer bases eletrônicas.

É perceptível que Canções para depois do ódio é um trabalho motivado por um estado de perplexidade diante de uma nefasta ordem política, econômica e social que insiste em avançar com seus tentáculos ultraconservadores por sobre o mundo. Frise-se: o Brasil de Marcelo Yuka também é parte integrante desse conturbado estado de coisas.

Por mais que carregue em sua história pessoal as marcas dos equívocos humanos, o artista faz questão de aplacar qualquer possibilidade de ira diante das adversidades. No fundo, o que ele nos diz em seu novo rebento musical é que as tensões, ruídos e conflitos podem ser repensados à luz de alguma lucidez e serenidade. É, por assim dizer, uma maneira diferente de conceber o que ainda pode fazer valer nossa existência.

Vislumbrar para além do ódio uma via movida pelo otimismo não é uma construção nem um pouco fácil de se apreender ou praticar. Tal exercício pode assumir uma ressonância utópica. No Marcelo Yuka de hoje, os caminhos da mente e do coração fluem com mais leveza, evidenciando que o amor, no seu sentido mais largo possível, não é balizado por vãs expectativas de aceitação.

 

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos e filmes.

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *