Gramofone

Por Fabrício Brandão

 

OQUADRO – NÊGO ROQUE

 

 

Continuar os caminhos é sempre uma complexa missão quando o assunto é a criação artística. Nesse processo, o desafio maior parece ser o de desenvolver um novo projeto com consistência e uma identidade própria, capaz de comunicar algo ao mundo. É no quesito autoral que as coisas ganham corpo, sobretudo na expectativa gerada em torno daquilo que um artista pretende expressar ao seu público após ter obtido sucesso com um trabalho de outrora.

As linhas que iniciam este texto se aplicam bem à trajetória de uma banda como OQuadro. Tradicionalmente marcado pela sonoridade emanada do rap, o grupo agora traça seu novo voo através do seu segundo disco, Nêgo Roque (Natura Musical), consciente de que tem em mãos uma vasta possibilidade de enveredar também por outras vias musicais. Tudo isso, claro, sem deixar de lado a potência discursiva e sonora do gênero que marca a banda desde as suas origens, algo que remonta a pouco mais de duas décadas de estrada.

A julgar pelas escutas de cada uma das 12 canções, a aposta em Nêgo Roque rendeu bons frutos. OQuadro continua colocando em prática o viés da criatividade coletiva na concepção de seus trabalhos. Isso significa que cada detalhe que compõe letras e arranjos foi pensado de forma a contemplar a participação ampla de todos os integrantes da banda. O resultado dessa sinergia de diálogos desembocou num álbum que projeta o grupo numa condição de sempre ter algo relevante a nos dizer.

 

OQuadro / Foto: divulgação

 

Desde a faixa abre-alas, Ainda é cedo, já somos devidamente apresentados ao universo revitalizado da banda. Dizer isso representa a constatação de que os sentidos aqui estão abertos para perceber o mundo em que vivemos, lugar este que nem sempre nos transmite boas novas, atravessado que está por nossas colossais desumanidades cotidianas. Na canção que batiza o nome do disco, a qual conta com a participação de BNegão, paira a sensação de que a expressão que vem de África não pode se reduzir a um espaço geopolítico delimitado no mapa mundi, mas sim de algo maior, sentimento que atravessa fronteiras e assume seu lugar de destaque no pensamento e na ação dos sujeitos dispersos pelo mundo. Noutro momento, estamos diante de Trabalho, composição que lança um olhar de criticidade sobre a lógica perversa das relações trabalhistas, estas mesmas que ainda trazem, sobretudo num país de marcas colonizadoras como o Brasil, reminiscências e máculas da exploração do homem pelo homem segundo a estúpida ordenação capitalista.

Em Muita onda, faixa que conta com as participações de Emicida e Dj Gug, o vigor discursivo das falas não deixa nada a desejar, representa a propriedade de uma atitude inquieta que se exalta após se deparar com a avalanche de acontecimentos de uma conturbada contemporaneidade. Nesse “mar revolto” da tão propalada pós-modernidade, o sujeito da perplexidade testemunha seu tempo sem se considerar acima de qualquer regra estipulada. É ele mesmo um alguém que transita pelas vias escorregadias da sua própria identidade.

Me diz quanto vale expressa um questionamento permanente a respeito da violência, mesmo que algumas vezes simbólica, exercida sobre o Outro. Então, quem seríamos nós para mitigar nossos semelhantes em razão de qualquer suposta diferença ou pelo simples capricho de reproduzir a miopia das relações de poder? Certamente, a resposta ficará a cargo das nossas consciências e do quanto estamos imersos numa noção de controle da liberdade alheia, as tais amarras do corpo e da mente.

Se a paisagem que atravessa a vida está impregnada por uma insônia manifesta, há momentos em que buscamos algum alento. Diante do contraste entre tensões e levezas tão típicas das paisagens humanas, é salutar pensar que uma canção como Luz vem para equilibrar nossas mais opostas percepções da existência. É uma espécie de tomada de consciência que aponta para um necessário resgate do sublime em nós. Seguindo esse fluxo, a canção aqui ganha contornos de beleza pelas luxuosas interpretações de Indee Styla e Raoni Knalha.

 

OQuadro / Foto: divulgação

 

Um dos pontos altos do álbum é certamente Jahggant, um verdadeiro conjunto de referências que conciliam elementos derivados do jazz de New Orleans, efeitos eletrônicos e da pungência da cultura afro-brasileira. Nessa harmoniosa evocação de ritmos que dialogam entre si, OQuadro consegue comunicar o poder precioso da mescla de linguagens sonoras que aproxima mundos distantes. Já Pés no chão reforça a necessidade de se firmar a continuidade dos caminhos sem perder a lucidez e tampouco a capacidade de sonhar, e nos diz: “A verdade precisa de quem milite em nome dela/ e não de revolucionários de meia tigela”.

Nêgo Roque é um álbum que nasce com uma proposta de comunicar pelas vias mais enxutas possíveis e mais certeiras, é o que nos diz o baixista e também vocalista Ricô. Segundo ele, uma perspectiva de simplicidade foi buscada para os arranjos. “Em alguns momentos, esteve presente a ideia de estudar o silêncio, o barulho e o rock também. O rock é muito além de distorção, está na fala, nas frequências mais graves e sujas, e acho que a gente conseguiu usar isso de maneira minimalista e inteligente ao mesmo tempo”, sustenta.

Norteado por um viés experimentalista, o disco segue a atmosfera do rock e tem a característica marcantemente voltada para o afropunk, evidenciando uma atenção especial às temáticas ligadas ao negro e seu lugar no mundo. A banda reflete sobre a negritude como um resgate de algo pretérito, mas também direcionando um olhar para o futuro, quiçá um ambiente de ressignificação, diálogo e construção identitária. Por sua pluralidade vocal, potencialidade discursiva, arranjos cuidadosamente elaborados e um trajeto por múltiplos estilos e texturas sonoras, é possível arriscar que o OQuadro inscreve sua importância na cena musical brasileira contemporânea. Eis aí algo irreversível.

 

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos, filmes e no ato apaixonado de tocar bateria. Atualmente, é mestrando em Letras pela UESC, cuja linha de pesquisa reúne Literatura e Cultura.

 

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