Janela Poética I

Carolina Caetano

 

Foto: Jussara Almstadter

 

Sou um homem vário
embora nem me possa homem chamar
pelas veias tão finas sob a pele que correm
clara, de penugem alguma
e o ventre mole, de um buraco vasto
para a vida

Sou um homem dum bem
amiúde governado, sou um homem casto
de olhos grandes calados assentados
num ponto ameno, sem água, bicas
sou um homem adestrado, pasmado, sadio
de corpo, almas tardias, sede alguma desde a partida
da voz pela boca
que calou-se, cessou, tem preguiça

Sou um gênio bravo
embora assim não me possam dizer
pois mesmo uma parca rolinha, moribunda, arredia
pudesse-me estar ao lugar e chamar-se de homem
de gênio bravo, com as almas tardias
e os olhos salgados, atravessados
do labor prescrito pelo pão, pelo domingo
eterno que espera
o próximo dia

Sou um homem bruto, arrastado, guardado
como os sumos venenosos em perene trancados
sob o corpo da língua
sem hora para isto, sem o dia daquilo
ou ao menos a roupa secando a esperar-me
nos porvires,
nas avenidas, sou um homem cego, esfregando as antenas às paredes da ida
diária, cegamente sabida

Sou um homem salvo, longo, temperado
levado ao brando fogo da feitura abusiva e serena
pelos donos da vida, desta, daquela, dos nomes das ruas
adormecidas
sou um homem chamado de homem sem que assim possa um deus conceber
sem o sangue largo, desde os dias repetidos em que as palavras ainda infantes foram-me os
[homens levando
amiúde e sem anunciada justa piedosa partida
sou um homem  acertado
com as contas das horas, invisíveis e brancas, são os olhos talvez sou um homem
construído e estourado na noite
reavido e adestrado no dia
sou um homem arcado, cercado, dormente
embora não mos possam levar
os bicos vermelhos dos seios, rijos, eriçados
ao roçar qualquer da primeira brisa

 

 

***

 

 

somente vogais são palavras
aproxima-se um lento rebanho
mudos dentes, palato, tratasse
dist’então minh’então desventura,
mas nem tão se carregam sozinhas
quanto em só já pertençam-se suas

levantam-se pororocas
e delas, abluídas,
emergem vogais despidas
a soar como quem se acorda

eis a só sinonímia possível
quando trota o rebanho em plurais
trotem cais, trotem sais, restam ai
nasçam ai, cresçam ai, morram ai
comam ai, corram ai, riam ai
os mares salgados ai,
veleiros atracam ai

não engole – dizem – tua saliva
de vogal não passa tua palavra
aproxima o rebanho baboso
e à boca encharcada se engorda
trotem sais, trotem cais restam ai
os mares salgados ai
veleiros atracam ai.

 

 

***

 

 

coceira no canto da manhã

 

também não é preciso saber se estamos felizes
temos um navio em cada mão
já é um costume o que era prodígio
em tê-los
o fato é que o casco se colide há tanto tempo contra a água (a mesma, dizemos) que um dia a manhã se torna filha de nossas mãos
ou o mar
ou o caminho impossível da linguagem despiu isto, e é tão, meu deus, como é claro, faz-nos pensar
como papai é um brincalhão, e engraçado, olha o que ele fez!
mas papai sempre esteve morto, e o papai a quem chamávamos Docéu nunca teve exatamente um cheiro característico ou masculino sobre o qual jamais precisássemos esforçar para crer
já mamãe cheira demasiadamente onde está.
Daí o caminho impossível do idioma (ainda a voz) despe isto, tão compreensível quanto fora claro e, meu deus, nossos navios se fundem com as mãos e a manhã torna-se filha dum estranho invisível
que despe-se para nós
Então nós cobrimos os nossos olhos com a pele para dormir
precisamente onde oscilam navios, grandes navios ou leves, como é claro
tanto quanto fora compreensível
e talvez apenas o pecado dalgumas palavras tenha nos acometido
subscrito no caminho impossível das carnes e dos ossos
precisamente onde os navios nunca tiveram pronde ir
e ficam salvos.
Para dormir.

 

 

 (Carolina Suriani Caetano, nascida em oito de setembro de mil novecentos e oitenta e nove. Uberaba. Minas Gerais. Serrado)

 


 

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1 comentário

  1. Mineirinha desgramada!
    Leila, Fabrício, a sensibilidade que vocês imprimem nesta joia de revista sempre me comove! O modo com que as artes e os artistas são colocados aqui.. enfim! UMA DELÍCIA!
    Beijão!

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