Janela Poética I

Myriam de Carvalho

 

Luciana Bignardi

Foto: Luciana Bignardi

 

POETRY

 

Though the rainbow is richly-coloured,
It will soon fade away.
Milarepa

1.

“Quem boa cama fizer, nela se deitará”
– Provérbio português

 

Hoje é dia 10 18
Data que me traz à rija têmpera
das palavras,
das mais doces às mais duras,

As minhas palavras são temperadas
como o ouro, como
o aço,

As minhas palavras são deusas consagradas,
da linhagem dos sentimentos os mais puros, mais
profundos, mais complexos, mais
sentidos,

Que as palavras são para ser amadas!
Entrego-me ao poder das palavras
como àquele único amante que me eleva
às âncoras onde se fundem corpo e alma.

As palavras são para ser amadas!
Com as palavras se salva ou se condena,
com as palavras se escraviza, ou se liberta,
com as palavras se louva, ou se despreza,

ou se ama,
Com as palavras se escolhe o destino –
a vida – ou a morte –
como quem faz a cama

 

 

2.

 

“Tão pobres somos
que as mesmas palavras nos servem
para exprimir a mentira e a verdade”
Florbela Espanca

 

A minha guarda não me larga.
Fétida, pútrida, maninha.
Algemada, a coragem que se apaga…
– Amanhã – dizem a mãe e a madrinha

– é outro dia; dorme agora,
descansa em paz, na brasa dos
grelhados. Deixa lá, que se tiveres a
tua hora, ela virá buscar-te a casa.

– Mas vem, Tu, vem de mansinho
como quem venha de longe… E
com jeito e com carinho,

de facto, vem me acordar!
Que urge o tempo que lá vai,
e eu nasci para Te cantar!

 

 

3.

 

 

A Mão escreve; e tendo escrito,
Vai embora; e nem tua piedade nem teu espírito
Lhe farão apagar nem uma linha
Nem lavar uma palavra, esses teus gritos.
Omar Khayyam

 

Preciso de palavras.
Para cumprir
os versos que me faltam.

Cadela esfaimada – acossada pela ramona –
a farejar migalhas,
cada rio, cada onda, árvore, ou nuvem – um oásis,

Cada momento
a sós contigo,
uma visão

 

 

4.

 

“É só com sangue que se escrevem versos”
Saúl Dias

 

Versos,
minutos,
momentos dispersos.
E a mulher-poema ambulatório,
eterno –
a comoção nos olhos –
caixeira-viajante, estrela
cadente,
clériga-vagante,
garimpeira de esmeraldas,

A carne
à procura de um ninho,
E só o Poema
abre o caminho

 

 

5.

 

Han Shan poems were written on bamboo, wood, stones, and cliffs.

Escrevemos nas rochas antiquíssimas da montanha gelada, nos troncos doridos das
velhas sequóias, dos embondeiros, testemunhas das dores da Terra,

Escrevemos na areia da praia, na espuma das ondas, que nos moldam as mãos, na
frescura das ervas, que nos moldam os dedos, nas nuvens que passam e nos moldam
os sonhos,
Escrevemos nas corolas humildes das flores silvestres, nos ramos dolentes dos
salgueiros, nas bordas das canoas, na água das ribeiras, nos juncos das margens.

Escrevemos na chuva, no vento, no verão, no inverno, na luz e no drama, em qualquer
momento,

Escrevemos na pele dos tambores, nos silvos dos comboios, nos sinos dos
campanários, nas sirenes das fábricas, nas marchas forçadas, nas fugas e retiradas, nos
campos minados,

Escrevemos porque dói a pele mirrada das crianças a quem roubaram o pão,
Escrevemos porque dói a mão ensanguentada das feridas das guerras,
Escrevemos porque dói os refugiados, condenados sem causa.

Escrevemos porque olhamos os ponteiros do relógio, atentos à declinação do sol.

Escrevemos porque amamos.
A Escrita é a comunhão dos xamans
– fundidos todos no fluir do Tempo

 

Myriam Jubilot de Carvalho, 1944, portuguesa. Foi professora. Representada em várias antologias e revistas. Divulgadora da cultura e poesia do período do Al-Andalus. Colaboradora no jornal “O Autarca”, de Moçambique. Publica no site brasileiro “Recanto das Letras”. Dois livros de poesia publicados.

 

 

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1 comentário

  1. Belos poemas!

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