Janela Poética I

 

Foto: Viviane Rodrigues

 

 

Daniel Gonçalves

 

O amor quando se afasta da tua luz deixa tudo desarrumado.
Caminhas de olhos vendados, tropeçando nas palavras que ficaram por dizer.
Na verdade o que ficou por dizer não foram palavras.
Foi uma casa caiada de fresco, um jardim com tulipas todo o ano.
A cancela vedando os gatos.
Por isso esta cadeira vazia.
De um lado para o outro, carregando e esvaziando o silêncio.
Sempre o silêncio.
Não podia ser outra coisa que outra coisa não sobra quando estás sozinho.
É a balança com que medes os teus pensamentos.
Sai-te do bolso como quem perde moedas e não se importa com o tilintar da miséria.

 

***

 

o vestido que trazes está gasto como o nome que deste ao amor
saqueado como o chão da seara depois da fermentação do verão
inútil como uma palavra à roda de um poema que não se alumiou

o vestido que trazes arruinou a sua bainha e desfiou-se a chorar
parece um jornal amarrotado uma película translúcida de silêncio
deixando ver as feridas nos joelhos o coração resistindo ao vento

passou de moda porque deixaste de te despir com a luz acesa
e o espelho já não alcança a parede onde havia um outro retrato

já não te serve porque esqueceste de mudar a água aos girassóis
e agora há uma escuridão que se enovela à volta da tua tristeza
pesando sobre os teus olhos como uma pedra tirada a um poço
ou uma música de embalar de onde se perdeu a letra e o sonhar

o vestido que trazes está perfumado de pérolas que se partiram
num excesso das sombras que musicam a vaivência da solidão

e como uma vinha a quem se arrancou o chão antes da vindima
pareces-me abreviada despida exangue impossível descosturada

 

 

(Daniel Gonçalves nasceu na Suíça e é filho de emigrantes portugueses. Em 1983, a sua família regressa a Portugal e fixa residência em Santo Tirso. Estuda em Ermesinde e Braga, onde completa a Licenciatura em Ensino de Português. Desde 1999 que leciona em Santa Maria. A sua obra mereceu vários destaques e edições. Entre os principais prêmios, conta-se o Prêmio de Revelação de Poesia da APL 1997, o Prêmio de Poesia Cesário Verde 2003 e, mais recentemente, o Prêmio de Poesia Manuel Alegre 2010. Os últimos livros publicados foram “a tua luz costurou-me uma bainha no coração” (Editora Labirinto) e “um coração simples” (Instituto Politécnico de Leiria, ambos em 2012)

 

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *